As crianças do 'califado' e o 'plano avestruz' do Governo português
Enterrar a cabeça na areia, como as avestruzes, tem sido a mais visível atitude do governo e das autoridades de segurança nacional quando questionadas sobre que plano está preparado para apoiar o repatriamento e o acolhimento dos familiares de jihadistas portugueses - cerca de duas dezenas de crianças, a maioria nascida no "califado" - que ainda estão detidos na Síria, depois do colapso do autoproclamado Estado Islâmico.
A ONU e a UNICEF já lançaram um apelo à comunidade internacional, principalmente aos países que têm cidadãos naquele território, para não voltarem costas a estas crianças - cujo número será cerca de 29 mil, a maioria menor de 12 anos. "Estas crianças estão entre as mais vulneráveis do mundo. Estigmatizadas pelas suas comunidades e evitadas pelos seus governos", é salientado.
O português Nero Saraiva - o único sobrevivente dos seis jihadistas do grupo de Sintra -, que ocupava um lugar de topo no comando do ISIS, foi detido na Síria, conforme noticiado pela Sábado. Será pai de uma dezena de filhos nascidos naquele território, que estarão com as suas mães em campos de refugiados naquele país.
Questionado de novo sobre que plano existe para repatriar e apoiar as crianças que têm nacionalidade portuguesa, o Governo continua a ter um "manto de silêncio' a pairar sobre o assunto.
As respostas são as mesmas, sem qualquer informação concreta, desde início de 2018, quando pela primeira vez, através do diretor do Serviço se Informações de Segurança (SIS), houve um primeiro aviso em relação ao possível regresso das mulheres e dos filhos dos portugueses que combateram para o Daesh - tal como está a acontecer noutros países.
Na altura, a secretária-geral do Sistema de Segurança Interna (SSI), procuradora Helena Fazenda, disse que seria feita uma avaliação "caso a caso", sem avançar mais nada sobre a estratégia, meios, entidades envolvidas.
"É uma situação complexa, deve ser tratada com reserva e está a ser acompanhada e avaliada", sublinhou. Uma resposta que se manteve no início do corrente ano, quando reagiu, a pedido do DN, a declarações sobre o assunto do ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE).
Augusto Santos Silva declarara que não queria em Portugal "pessoas que possam constituir uma ameaça". Fazenda garantiu que estava a ser feita uma avaliação "por diversas entidades e serviços" que tem em conta a "ameaça" em termos de segurança que pode representar cada um dos indivíduos em causa.
Mais de seis meses depois, questionados de novo nesta semana, os gabinetes do SSI e do MNE, mantêm o tom genérico e vazio.
"Todas as situações de cidadãos nacionais que tenham estado ou permaneçam na região de conflito sírio-iraquiana são objeto de analise e avaliação. Trata-se de matéria classificada, continuando válida a informação já anteriormente disponibilizada", repete Helena Fazenda, que coordena a Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo, onde está previsto um plano para prevenir a radicalização e os extremismos, desde 2015, que nunca foi conhecido.
Da parte de Santos Silva, idêntica atitude: "Como reiteradamente tem sido dito, a questão dos combatentes terroristas ou de indivíduos associados à organização terrorista autodenominada Estado Islâmico suscita problemas relevantes e sensíveis de segurança nacional e europeia, que requerem uma análise ponderada, com a articulação de vários serviços do Estado português, a qual se encontra em curso. A perpetração, envolvimento e participação em atos terroristas configura um crime grave e exige o apuramento de responsabilidade criminal pelas entidades competentes."
Em relação a existir algum pedido da família em Portugal de Nero Saraiva para os seus filhos e mulheres serem repatriados, o MNE sublinha que "não foram feitas quaisquer diligências junto dos serviços" daquele ministério.
Há, no entanto, conforme o DN já noticiou, um caso diferente. O pai dos irmãos Celso e Edgar Costa, mortos em combate, já pediu há mais de um ano para acolher as noras e os netos, continuando sem saber de nada.
"Uma política destas não depende de se as pessoas vêm ou não. Tem de existir. Não se trata de saber qual é o plano, pois terá sempre de haver reserva no tratamento destas vítimas, mas de haver, de facto, um plano. Até agora desconhecemos que exista algum", assinala João Lázaro, dirigente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).
O Instituto de Apoio à Criança (IAC), entidade de excelência neste género de apoio social, também não foi contactada. "Não estamos envolvidos em nada relacionado com esse tema", refere Paula Paçó, que em final de 2017 participou participou na primeira ação de sensibilização no nosso país, organizada pela Polícia Judiciária, com o objetivo de habilitar as polícias e as entidades de apoio social, como o IAC, a apoiar as famílias dos jihadistas. Revela que desde essa altura, o IAC "não voltou a ser chamado".
Contactadas pelo DN, fontes das várias polícias, desde a GNR, PJ, PSP e SEF, que trabalham na área do contraterrorismo, também desconhecem a existência de um plano.
"Não ter nada preparado antecipadamente, para prevenir todos os cenários, representa um risco acrescido para a segurança internacional. Aqueles campos são autênticas 'fábricas' de extremismo. Quanto mais tempo deixarem lá as pessoas, pior. Não se percebe porque Portugal, que tem tão poucos, não faz a sua parte e acautela esta situação", lamenta um oficial.
David Ruah, que se especializou da Rede de Alerta contra a Radicalização (RAN), da Comissão Europeia, defende que "a estratégia de repatriamento dos 'filhos do califado' não deve promover uma aceitação em massa, mas ter em conta uma análise de risco ajustada caso a caso, que permita distinguir as vítimas reais que nunca escolheram integrar o ISIS daquelas que podem constituir um risco elevado de segurança nacional".
No entender deste perito em contrarradicalização, "esta análise deve ter em consideração a idade legal, que pode ir até aos 18 anos, na maioria dos países, e o nível de vulnerabilidade de radicalização. Por exemplo, uma criança de 4 anos jamais deve ser encarada como culpada de terrorismo e deve proceder-se à sua reintegração social, mas, no caso dos adolescentes, é necessário avaliar-se o processo de internalização na cultura do ISIS: foram treinados? Cometeram atos violentos? A decisão de se juntar ao ISIS foi voluntária? Após isso, é necessário manter um equilíbrio entre medidas de prossecução e programas de reabilitação social, evitando ter apátridas que podem constituir um risco no futuro, mas zelando pela segurança".
Ruah sublinha que "Portugal tem sido citado como boa prática na prevenção do terrorismo, mas deve garantir que isso não é mero produto do acaso, desenvolvendo efetivamente a sua Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo (2015), a qual possui três páginas genéricas; incentivando, para isso, alterações legislativas que enquadrem o repatriamento de menores".
As autoridades portuguesas até acabaram por ter a vida facilitada, tendo em conta que dos portugueses que podiam representar alguma ameaça - os seis jihadistas alvo de inquérito-crime do Ministério Público (MP) -, apenas Nero Saraiva está vivo, paralisado da cintura para baixo, detido na Síria pelas forças da coligação internacional.
Restam as mulheres, cerca de cinco, sobre as quais a avaliação de risco terá de ser rigorosa, e as crianças.
Curiosamente, a única entidade do governo que já defendeu publicamente a necessidade de encontrar uma solução é o Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) - a que compete fazer as avaliações de risco.
Esta avaliação está a ser feita apenas com base na participação de cada pessoa no conflito, através das informações de outras agências. Não terá havido ainda contacto direto entre os agentes das secretas nacionais e os familiares dos jihadistas na Síria.
"Estas crianças merecem ser objeto de um apoio especial em termos de reintegração ou de enquadramento na sociedade", sublinhou num seminário, em março, a secretária-geral do SIRP, Graça Mira Gomes.
Uma posição subscrita pelo Conselho de Fiscalização do SIRP, no seu relatório de 2018: "Portugal não pode deixar de ter preparadas linhas de atuação solidamente concebidas e exercitadas para poder enfrentar a delicada questão, tão de segurança e jurídica quanto de humanidade, do regresso de familiares, incluindo crianças, dos chamados combatentes estrangeiros", assinaram Abílio Morgado, presidente, escolhido pelo PSD, Filipe Neto Brandão, presidente da bancada socialista, e António Rodrigues, jurista e ex-deputado social-democrata, que integram este conselho.
Nesta quinta-feira, a Audiência Nacional de Espanha decretou ordem de detenção contra quatro mulheres - três espanholas e uma marroquina, viúva de um espanhol - que viajaram para a Síria em 2014 para se juntarem ao exército terrorista ISIS.
Segundo o El País, as mulheres estão retidas num campo de detenção das milícias curdas, sob o comando das forças da coligação, lideradas pelos Estados Unidos. Estas mulheres são mães de 17 crianças menores, uma das quais recém-nascida, que estão com elas no campo.
As autoridades espanholas entendem que as mulheres devem responder judicialmente por "diversos delitos relacionados com o terrorismo".
O repatriamento de familiares de jihadistas é uma questão com que se estão a debater vários países europeus. As últimas estimativas apontam para cerca de 12 000 - quatro mil mulheres e oito mil crianças - de origem europeia, retidas neste momento só em Al-Hol, a nordeste da Síria, num campo controlado pelos curdos, que apelam para os irem buscar.
Têm sido a conta-gotas os casos de repatriamento, evidenciando a relutância e os receios dos governos em lidar com esta questão.
Em junho, o governo belga resgatou seis crianças, com idades entre os 6 e os 18 anos, mas há dezenas de outros menores belgas retidos na região curda.
"As crianças estão agora a ser monitorizadas e avaliadas pelas autoridades competentes locais: o procurador e entidades de apoio à juventude", revelou o ministro dos Negócios Estrangeiros belga, Didier Reynders.
Os Estados Unidos, a França e a Holanda também já repatriaram um reduzido número de mulheres e de crianças, mas a maioria permanece no território sírio.
A Alemanha resgatou uma dúzia de crianças, filhas de jihadistas daquele país, sublinhando que se trata de "vítimas" e que devem voltar se tiverem família para as receber.
Na Alemanha, as crianças mais velhas que tenham sido radicalizadas são colocadas em instituições especiais, mas não ficarão detidas.
A UNICEF estima em cerca de 29 mil o total de crianças estrangeiras que estão na Síria - 20 mil iraquianas e nove mil de 60 outros países do mundo -, às quais se juntam cerca de um milhar de filhos de combatentes do ISIS que ficaram no Iraque.
"A maioria destas crianças nasceu nas áreas de conflito controladas pelo Estado Islâmico ou viajaram para lá com os seus pais. Outros, principalmente rapazes, foram coagidos e manipulados para apoiar os grupos armados, muitas vezes para garantirem a sua própria sobrevivência. Todas estas crianças são vítimas de circunstâncias profundamente trágicas e de violações flagrantes dos seus direitos", assinala a UNICEF.
Para esta organização internacional, "os milhares de crianças filhas dos combatentes estrangeiros, definhando em campos, em centros de detenção ou orfanatos na Síria e no Iraque, ou noutros locais, estão entre as crianças mais vulneráveis do mundo. Vivem em condições pavorosas, sujeitas a constantes ameaças à sua saúde, segurança e bem-estar".
Em junho passado, o alto-comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas apelou aos governos que assumam responsabilidades em relação aos seus cidadãos que se juntaram ao ISIS, pedindo que repatriem os seus familiares que não estão detidos por motivos judiciais.
Mas o impasse domina também a questão judicial. Nero Saraiva pertence à chamada célula de Leyton - constituída por um grupo de seis jovens com origem na zona de Sintra que se radicalizaram em Inglaterra. Tal como os outros cinco que perderam a vida no 'califado', é alvo de mandado de detenção europeu e internacional, emitido pelo Departamento de Investigação e Ação Penal (DCIAP).
Neste momento, as autoridades responsáveis por esta investigação não acreditam que possa ser extraditado, nos próximos tempos, para Portugal.
"Quem decide sobre um eventual pedido de extradição de Portugal serão as autoridades judiciárias estrangeiras do país que determinou a sua prisão", sublinha fonte judicial.
O MP não tem ainda informação suficiente sobre a situação de Nero Saraiva para poder pedir a extradição do português à Síria, onde está detido e onde terá de responder por crimes alegadamente cometidos naquele território, e julgá-lo em Portugal.
Na opinião desta fonte, só depois desse julgamento poderá ser requerida a extradição ao abrigo da Lei da Cooperação Judiciária Internacional, cujo procedimento está definido no artigo 69.º:
1- Compete ao ministro da Justiça formular o pedido de extradição de pessoa contra a qual exista processo pendente em tribunal português ao Estado estrangeiro em cujo território ela se encontra.
2- O pedido, depois de devidamente instruído, deve ser transmitido pelas vias previstas neste diploma.
3 - Compete à Procuradoria-Geral da República organizar o processo, com base em requerimento do Ministério Público junto do tribunal respetivo.
4 - O Ministro da Justiça pode solicitar ao Estado estrangeiro ao qual tenha apresentado um pedido de extradição a participação do Estado português no processo de extradição, através de representante designado para o efeito.
Nero, o único que sobreviveu, ficou gravemente ferido em Baghouz, o último reduto do Daesh, num ataque das forças aliadas. Ganhou experiência militar em África, onde se juntou a uma milícia do grupo radical Al-Shabaab na Somália e na Tanzânia.
Além dos seis de Leyton, haverá cerca de uma dezena de lusodescendentes com as suas famílias, filhos de imigrantes portugueses, com dupla nacionalidade, cujo repatriamento está também em aberto.
Um dos casos é o de Ângela Barreto, uma das mulheres de Nero Saraiva, lusodescendente viúva do também jihadista português Fábio Poças, morto há cerca de um ano.
Entrevistada pela RTP, Ângela veio da Holanda, onde vivia com a mãe, natural de Abrantes. Já viu morrer um dos dois filhos (uma menina de três anos) na Síria. Agora quer regressar a Portugal e a família fez esse pedido às autoridades portuguesas, estando a aguardar resposta.
Outro lusodescendente, filho de pais imigrantes portugueses no Luxemburgo, Steve Duarte, também pediu para regressar.
Desta forma, as autoridades portuguesas já têm, pelo menos, pedidos de três famílias por decidir: dos irmãos Costa, de Ângela e de Steve Duarte.
[Artigo publicado originalmente no dia 7 de setembro.]