As birras de Joacine e a vergonha alheia

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O espetáculo degradante que Joacine Katar Moreira deu este fim de semana no congresso do Livre deve obrigar-nos a todos a uma reflexão profunda. Sobre o que move alguém a querer entrar para a política, sobre os critérios utilizados pelos partidos políticos para escolherem candidatos e, sobretudo, sobre as nossas escolhas enquanto cidadãos eleitores.

Conheço mal o percurso de Joacine Katar Moreira enquanto ativista pelos direitos das mulheres, contra o racismo e a xenofobia. Partilho cada uma destas causas, mas desconheço as capacidades e a substância da mulher que lhes dava rosto. Sei - porque fui acompanhando a campanha - que Joacine se candidatou nas últimas legislativas com uma agenda muito própria - nem sempre completamente alinhada com a do partido que escolheu -, sem nunca sair da sua "zona de conforto" e falando apenas dos temas que dominava e de que queria falar.

De dia para dia, a campanha eleitoral foi-se tornando cada vez mais sobre Joacine Katar Moreira e menos sobre o Livre. Só ela podia aparecer, dar entrevistas, falar à comunicação social, mesmo quando não era ela a convidada. Com o aproximar do dia das eleições, o deslumbramento foi aumentando, como se o Livre não tivesse outros candidatos e outros protagonistas. Como se o conjunto das suas singularidades lhe permitisse encarnar uma espécie de superstar - como lhe chamou a Mafalda Anjos - e o partido existisse apenas para a servir e lhe obedecer.

A eleição de Joacine coroou-lhe o ego. Convicta de que acabara de fazer história na política portuguesa, a deputada decidiu criar o seu próprio partido e deu-lhe três nomes: Joacine Katar Moreira. O primeiro dia de trabalhos parlamentares foi para lamentar. A roda da saia do assessor antecipava um mandato de folhos, purpurinas e muito tule mediático em torno da persona que Joacine vinha construindo há meses. O trabalho mais importante, claramente, não estava dentro plenário, mas cá fora, onde jornalistas nacionais e internacionais faziam fila para entrevistar a mulher, negra, gaga, feminista de convicção, ativista por paixão. Entretanto passou o prazo da entrega de uma proposta de lei e a deputada esqueceu-se de como é que devia votar sobre a Palestina? Detalhes. Quando é que é a próxima entrevista? Joacine convenceu-se de que se tinha transformado num ícone, inebriada pela exposição que o cargo de deputada lhe dava.

No atual estado das coisas, Joacine não é a única responsável. O Livre, que criou o "monstro", também tem uma grande reflexão a fazer. Não tanto pelo método completamente discricionário que usa para escolher candidatos - as primárias -, mas sobretudo porque a escolha de uma persona como Joacine não foi totalmente ingénua. Cinco anos, sem eleger ninguém em eleições nacionais - e sem subvenção - levantavam sérios problemas de sobrevivência a um partido que precisava urgentemente de um rosto novo, disruptivo, que se distinguisse dos demais candidatos e que criasse algum impacto entre o eleitorado.

Acredito que este não tenha sido o único critério. Alguma coisa Rui Tavares - que a indicou - e os militantes - que a escolheram - viram nela para a elegerem como a principal candidata a representar o partido no Parlamento. Acredito também que todos nós, em algum momento da vida, já avaliámos mal uma pessoa, já nos enganámos ou nos deixámos enganar. Mas, a verdade, é que, durante a campanha, o Livre nunca pareceu muito incomodado que se discutisse mais a gaguez da deputada do que a substância política do que dizia - até porque duvido que alguém se lembre de alguma das ideias, propostas ou pensamentos da então candidata.

Por fim, nós, eleitores, que fazemos a derradeira escolha e que tantas vezes embarcamos nesta construção de figuras políticas de cera. Porque fica bem dizermos que somos pela diversidade - como se fosse um fim em si mesmo -, porque gostamos da frontalidade com que alguns dizem as coisas - mesmo que não digam coisa nenhuma - ou porque queremos apenas protestar contra o status quo. Nós eleitores que não nos damos ao trabalho de avaliar os candidatos a cargos políticos pelo seu conjunto, mas apenas pela forma ou pela novidade. Os eleitores que nunca quiseram eleger Rui Tavares, mas não tiveram dúvidas em eleger Joacine Katar Moreira.

É hoje muito claro que Joacine foi um erro de casting. Dos que a escolheram para candidata, dos que a elegeram, mas, sobretudo, da falta de noção da própria. As atitudes a roçar a infantilidade, a vitimização permanente, misturadas com os tiques de arrogância e, sobretudo, a falta de noção deram esta mistura explosiva, capaz de provocar a maior das vergonhas alheias.

As consequências para o Livre estão ainda por determinar e dependem muito das lições que o partido retirar deste tipo de epifenómenos, que existem em todos os partidos políticos, mas que se tornam muito mais visíveis quando só se tem uma deputada.

Quanto a Joacine, pode até continuar como deputada, se perder a confiança do partido. Mas, passado o efeito novidade e com o "currículo" que construiu em poucos meses, arrisca-se a ficar na história da política portuguesa como um pequeno apontamento pela chacota de que foi alvo. Quando, na verdade, teve uma excelente oportunidade para fazer história.

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