As luzes nunca se apagam na Ribeira do Porto, junto às "alminhas da ponte". Sob o baixo-relevo de Teixeira Lopes (pai) que evoca a tragédia, ocorrida precisamente naquele local a 29 de março de 1809, estão sempre velas acesas que intercedem pelo descanso eterno dos homens, mulheres e crianças afogados no Douro quando tentavam fugir à invasão francesa comandada pelo general Soult..Não se sabe quantos terão morrido ao todo, havendo historiadores que falam em largas centenas e outros que chegam a referir mais de quatro mil almas. O certo é que quando a cavalaria inimiga se aproximou da margem já o caudal do rio transportava cadáveres como se mais não fossem do que toros de madeira..Derrotado pelas tropas anglo-portuguesas na batalha do Vimeiro, a 21 de agosto de 1808, Junot, comandante da primeira invasão francesa (que ocupara Lisboa e ditara a partida da família real para o Brasil), bateu em retirada. Mas Napoleão não se deu por vencido..No princípio de 1809, depois de derrotarem os britânicos na Corunha, os franceses, comandados por Soult, avançaram sobre Portugal. Travados no rio Minho, dirigiram-se a Trás-os-Montes, onde tomaram Chaves. Daí rumaram a Braga e, finalmente, ao Porto. A rudimentar força que defendia a cidade, às ordens do bispo D. António de São José de Castro, pouco pôde fazer para travar o experiente, bem treinado e melhor armado exército inimigo..Na quarta-feira, 29 de março, às nove da manhã, o alerta foi dado: os franceses tinham ultrapassado as baterias portuguesas. Infantaria e cavalaria marchavam, imparáveis, sobre a cidade. Em pânico, milhares de pessoas correram para a Ribeira, numa tentativa de chegar à margem sul. O que aconteceu não estará longe do que Camilo Castelo Branco narra no romance Onde Está a Felicidade: "A multidão entulhou as barcas: o peso quebrou as entenas estrondosamente; as fauces do abismo engoliram massas compactas, jorros de centenares de corpos, famílias vinculadas no derradeiro abraço.".Para o jornalista e historiador do Porto, Germano Silva, este "desastre foi um dos maiores de sempre na cidade". Embora a estimativa de quatro mil vítimas lhe pareça exagerada, em função da população da época, salienta que, para além dos mortos na ponte, muitos outros terão perecido quando os barcos em que seguiam, numa tentativa de chegar a Gaia, se viraram sob o efeito do colapso daquela estrutura e ainda do fogo cruzado entre portugueses e franceses. "Isto sem falar em toda a destruição causada pelos invasores. Durante três dias consecutivos, saquearam, mataram e violaram a seu bel-prazer.".Única ligação terrestre do Porto à margem sul do Douro, a Ponte das Barcas, concebida pelo engenheiro Carlos Amarante (autor de outros projetos importantes no norte do país, como o Bom Jesus de Braga ou o palácio onde hoje funciona a Reitoria da Universidade do Porto), fora inaugurada a 15 de agosto de 1806. Como salienta Germano Silva, esta não era, todavia, uma ponte convencional. "Era constituída por um passadiço de madeira sobre um conjunto de barcas ligadas por cabos de aço." Todas as madrugadas era aberto um alçapão para que os barcos que abasteciam a cidade conseguissem passar.".Embora não haja certezas quanto ao que realmente precipitou a tragédia, é possível que o alçapão estivesse aberto, por descuido ou numa tentativa de travar os franceses. "Uma das hipóteses colocadas - refere ainda o historiador - é que tenha sido o bispo do Porto, que na véspera fora para a serra do Pilar, a ordenar a sua abertura para que fosse o exército inimigo a cair na armadilha.".O desastre teve um eco profundo no imaginário da cidade. Testemunhado por um pintor de identidade desconhecida, ficou registado todo o horror dos fugitivos engolidos pelas águas num quadro a óleo hoje guardado na Igreja de São José das Taipas, mas que durante muitos anos esteve na Ribeira do Porto, num nicho da muralha fernandina. "Criou-se, assim, a tradição de lá deixar flores, velas e até dinheiro por intenção das alminhas da ponte", refere Germano Silva, que considera esta uma das mais interessantes manifestações de religiosidade popular ainda existente no Porto..Mais de 200 anos depois da tragédia, as velas e as flores continuam a ser depositadas no local, sob o bronze de Teixeira Lopes (bem perto do monumento concebido pelo arquiteto Souto de Moura, inaugurado em 2009), mas o dinheiro das esmolas é gerido pela Irmandade das Almas de São José das Taipas de modo que todos os anos, a 29 de março, seja celebrada uma missa pelas vítimas. Assim é desde 1810, quando o povo da Ribeira entregou àquela irmandade o considerável capital reunido. Embora hoje já não se realize a procissão anual que ia da Cordoaria à Ribeira (interrompida com a chegada da I República e nunca retomada), nem por isso deixa de ser rezada missa solene..O curioso, como nota Germano Silva, é que "a cidade teve outras grandes tragédias, como o naufrágio do vapor Porto, que matou todos os seus ocupantes, em 1857, ou o incêndio do Teatro Baquet, em 1888, mas as alminhas da ponte são lembradas com maior expressão". Como se a fuga ao invasor estrangeiro lhes trouxesse o póstumo prémio do carinho popular.