No princípio era um miúdo reguila a crescer num país fechado ao mundo, em que a vida noturna era olhada com desconfiança e suspeição. Algumas décadas e muitas noites depois, Pedro Luz transformara-se no empresário que teve de negar um jantar no seu Alcântara Café a Mick Jagger porque a cozinha já estava fechada. Este trajeto empresarial, no mínimo surpreendente, que mudou de forma radical a vida cultural de Lisboa, é agora reconstituído por Rita Delgado, advogada, escritora e também antiga namorada do biografado, no livro Pedro Luz - Um Homem, Quatro Vidas, lançado esta 6.ª feira, em Lisboa..Empresário de visão e homem de altos critérios estéticos, é como o define, no seu depoimento, a escritora Maria João Lopo de Carvalho, que o considera o nosso Great Gatsby (numa alusão ao romance, um dos mais importantes do século XX, de Scott Fitzgerald): "Entrar no mundo de Pedro Luz é entrar no Great Gatsby do século XXI (...) Admiro a variedade inesgotável da sua vida. Acendeu a noite de Lisboa; tornou-se uma referência para muitas gerações e o traço da sua luz ficará muito para além de uma vida. Um homem e um esteta que transporta em si o extremo requinte das muitas esquinas e pontes do mundo. Um homem de sensibilidade e bom gosto, um congregador de pessoas, amigos, entendimentos e diferenças." Maria João é uma das muitas convocadas por Rita Delgado para falar de Pedro Luz como amigo, mas também como figura marcante da vida nacional..Ao longo de anos de convívio (conheceram-se há mais de 20), com muitas viagens pelo meio, Rita foi-se encantando com as muitas histórias e personagens de Pedro. Ela, que desde menina escreve para se entender e que é de uma família em que a vida não é apenas um somar de dias (é neta do General Humberto Delgado), foi registando o que ouvia. Mas, desafiada por uma amiga (Cila do Carmo), entendeu que não era imparcial e que importava ouvir outros pontos de vista, como nos conta: "Eu, que achava que conhecia a vida toda dele, acabei por descobrir imensas coisas. Até porque o Pedro não só é uma pessoa que não fala muito de si como não fica a pensar no que já passou." Ao desafio de Rita, responderam os amigos, os filhos, as ex-mulheres e namoradas, as pessoas que com ele trabalham ou trabalharam, o que não a surpreendeu totalmente: "Ele mantém as relações dele ao longo do tempo. É uma pessoa muito ponderada, que tenta perceber as reações dos outros e pôr-se no lugar do outro. Isso faz parte da sua solidez e do cuidado que põe em tudo.".Esta história começa na década de 1960, quando uma boa parte da juventude europeia e norte-americana decidiu glosar um dos lemas do parisiense Maio de 68 - "Sê realista, exige o impossível". É também a época dos black panthers nos Estados Unidos, da contestação à intervenção norte-americana no Vietname, da minissaia, dos Beatles e dos Doors. "Aos 16 anos - conta Rita Delgado - o Pedro tornou-se o agente da primeira banda rock que houve em Portugal, os EKos. Negociava os contratos deles, pouco depois meteu-se no mundo da moda, a comprar o que se usava no estrangeiro para vender cá." Uma história que o próprio conta na primeira pessoa no livro: "Pagavam muito mal, mas como sempre gostei de música, comprava e revendia gira-discos e outros materiais musicais, pelo que fazia algum dinheiro; o meu primeiro trabalho mais sério neste mundo foi quando me tornei agente de uma banda de rock (...) O baixista dos Ekos tinha uma casa que vendia caixões, onde ensaiavam e eu ia assistir (...); sempre tive um fascínio por música, acompanhei o aparecimento dos Beatles, dos Stones, do Bob Dylan, vivi intensamente toda aquela explosão de liberdade, de festa associada à arte; era o tempo dos Rat Pack, que mais tarde vieram a inspirar o Ocean"s Eleven; Sinatra, Dean Martin e Sammy Davies estavam em grande forma, eles fizeram Las Vegas! Antes de ir para a tropa eu fazia vida na Av. Álvares Cabral, ia muito aos cafés Guanabara e Dione, onde conheci o José Luís Mateus, o manager dos Ekos, que vivia ao lado da minha rua; foi aí também que fui apresentado ao Mário Guia (...).".Foi também por essa época que Ana Salazar o conheceu e se tornou amiga para a vida, como conta também nesta biografia: "O Pedro esteve sempre numa linha mais sportswear, como se fosse a Dsquare, mas era um sportswear muito especial, jeans com muita qualidade; quando passa a fazer as próprias coleções começa a vender que nem um louco; depois, quando a roupa fica uma chatice, muda; logo que sente no ar que as coisas já eram, ele não perde tempo.".A Democracia chegara a Portugal em abril de 1974, mas a mentalidade, é sabido, não se muda por decreto. Como nos recorda Rita Delgado "no princípio dos anos 80, a noite de Lisboa resumia-se a casas de fados e a um ou dois espaços como o Stones ou o VanGogo, em Cascais. É nessa altura que o Pedro viaja muito, vê conceitos estrangeiros e reinterpreta em Portugal, nunca pela via do franchising, mas pela adaptação à realidade nacional." Compreende também que importa investir em zonas da cidade que estavam subaproveitadas, como Alcântara, onde abre o Plateau, ainda hoje aberto nas Escadinhas da Praia, ou o Alcântara Mar e o restaurante Alcântara Café (mais tarde também o Dock"s e o Indochina). Mas só compreenderemos o alcance de tais decisões se viajarmos mentalmente para a década de 1980: "Naquele tempo - escreve Rita - as cidades não estavam a uma distância de um click. O Pedro teve algumas das discotecas e restaurantes mais emblemáticos de Lisboa, inventou a primeira cadeia de restaurantes portuguesa, abriu sessenta e cinco do Minho ao Algarve, e agora é dono do magnífico Brown"s Hotel Group. Sempre que fecha a porta de um negócio abandona o palco sem olhar para trás, sabe que nunca retornará, e recomeça noutro lado com a mesma paixão. E a sua forma de aprender foi sempre através das viagens pelo mundo, estas são um segundo eu do Pedro. São a sua verdadeira família. Detesta viajar sozinho, mas a viagem é dele mesmo.".A abertura do Alcântara Mar, no já distante ano de 1988, foi uma "loucura", como Rita nos conta no livro: "Não existiam e-mails em Portugal, os convites eram enviados por correio. A lista de convidados era extensa e eclética. Construída desde sempre pelo Pedro, com os melhores clientes das lojas de roupa, depois continuada e trabalhada no Plateau. Naquela noite não esteve meia Lisboa, esteve Lisboa inteira. Os automóveis estacionados iam de Alcântara até à antiga FIL. Foi um rompante, as ruas cheias de pessoas, que quase se atropelavam para entrar. Nas imediações as pessoas também pululavam, houve quem esperasse muitas horas para conseguir entrar. Só era admitido quem tivesse convite ou fosse acompanhado de alguém portador de um. Foi uma loucura, de parar o trânsito. Como dizia o Sr. Aníbal Vila: "Uma descoberta, as pessoas não sabiam o que era aquilo, nem ao que iam". -A enchente superou todas as expectativas. Tinham sido enviados cinco mil convites e apareceram muito mais de cinco mil pessoas; claro que iam rodando, não chegaram todas à mesma hora e a festa só acabou às sete da madrugada (...)." Mas este é também o livro de um homem que não descansou à sombra destes sucessos (e do dinheiro que ganhou com eles) mas que fechou vários negócios emblemáticos quando deixaram de fazer sentido para si e abriu outros, o mais recente dos quais é o Brown"s Hotel, na Rua Rodrigues Sampaio, em Lisboa, onde será lançado este livro..Com os seus leitores, Rita Delgado partilha algumas das suas inquietações ao longo deste trabalho de anos: "Conseguirei transmitir a riqueza da vida do Pedro? Irei escrever sem lamechices, sem branquear, ou sem cair no ridículo por tanto enaltecer? Será pretensiosa a minha crença, teimar em mostrar as quatro vidas deste homem? As vozes críticas podem dizer que é um percurso dedicado a frivolidades. Acredito que não são apenas as atividades políticas, científicas, artísticas ou humanitárias que merecem ser contadas." Inquietações à parte, Rita avançou. Por estas páginas passam muito mais do que as 1001 noites de Pedro Luz; passa todo um país conquista do direito à beleza e à diversão..dnot@dn.pt