Arquivos militares. Os documentos que contam a história da Guerra Colonial ainda são secretos?

Deputados discutem esta quinta-feira uma recomendação do BE para que todos os documentos que estão nos arquivos militares, anteriores a 1975, sejam desclassificados. Mas militares e historiadores apontam como problema maior a falta de recursos e organização dos arquivos.
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O Parlamento debate e vota esta quinta-feira uma proposta do BE que recomenda ao governo que desclassifique todos os documentos anteriores a 1975 que estão nos arquivos militares, em particular os que dizem respeito à Guerra Colonial, a partir de 1961. Um "imperativo histórico", refere o projeto de resolução. Não é a primeira vez que os deputados se vão debruçar sobre o tema: há dois anos uma iniciativa idêntica ficou pelo caminho, com o voto contra de PS e PSD, sob a alegação de que uma medida desta natureza pode pôr em causa o interesse nacional.

A discussão implica, desde logo, uma pergunta inevitável: o que está ainda classificado nos arquivos militares e porquê? A resposta é tudo menos linear e, curiosamente, passa por um nome que se senta agora na tribuna da presidência do plenário: Augusto Santos Silva, hoje presidente da Assembleia da República, era ministro da Defesa em 2010, quando recebeu um pedido para a desclassificação dos fundos do acervo documental do Arquivo da Defesa Nacional (ADN). Na resposta, um despacho datado de 14 de dezembro de 2010 (uma informação interna, que não foi tornada pública), o então ministro mandou desclassificar todos os documentos que constavam dos arquivos anteriores a 1975. Questão resolvida? Não, longe disso.

Aniceto Afonso, militar e historiador (coautor, com Carlos Matos Gomes, da obra Guerra Colonial ), foi também, entre 1993 e 2007, diretor do Arquivo Histórico Militar (que pertence ao Exército). Ao DN, o coronel conta que, naquele período, a desclassificação de documentos acabava por ser feita casuisticamente: quando um leitor sabia que um documento existia e o queria ler, o documento ia a "uma comissão e era desclassificado". "Era o que fazíamos até que o ministro Santos Silva fez o despacho, que em princípio devia valer para todos os arquivos militares", refere Aniceto Afonso, sublinhando que, desde aí, "todos os documentos estão desclassificados, podem ir a leitura, mesmo sem a desclassificação" dessa comissão. O princípio é geral, com exceção dos documentos que se "regem por normas próprias, que digam respeito à Justiça ou à Saúde, por exemplo".

Este é um outro plano que pode determinar a impossibilidade de acesso a um documento. De acordo com a lei, tratando-se de documentos que "integrem dados nominativos" (ou seja informação pessoal), estes só podem ser acedidos "desde que decorridos 30 anos sobre a data da morte das pessoas" ou, não sendo conhecida a data da morte, "decorridos 40 anos sobre a data dos documentos" e não menos de "dez sobre o momento do conhecimento da morte" (uma limitação que não é absoluta, desde que os dados pessoais sejam expurgados de um documento antes deste ser consultado). Estas são determinações que se aplicam a todos os arquivos. No caso dos militares acresce a possibilidade de uma classificação específica, de segurança - muito secreto, secreto, confidencial e reservado -, que é a que estará em causa no debate de hoje.

Aniceto Afonso diz que, "em geral, toda a documentação está a consulta", quer no Arquivo Histórico Nacional, quer no ADN, mas admite que "há resistências", nomeadamente no que se refere aos arquivos mais diretamente afetos aos ramos das Forças Armadas. Por outro lado, há documentação que "não estará [acessível] por algumas hesitações em considerar que o despacho do ministro da Defesa é suficiente para desclassificar". Por essa razão, não vê com maus olhos uma lei que clarifique essa desclassificação e confirme o despacho, que é utilizado "um pouco casuisticamente".

Mas não chega, até porque há outro problema que suplanta este: "Muitas vezes a documentação não está a leitura porque os fundos dos arquivos não estão tratados, não se sabe o que está lá, esse levantamento não está feito. Esse é o principal problema e seria bom que a lei obrigasse a colocar lá pessoal que o pudesse fazer".

Ao que o DN apurou, o ADN, por exemplo, já chegou a ter cerca de uma dezena de funcionários, estando atualmente reduzido a dois/três.

O coronel Borges da Fonseca, que também liderou o Arquivo Histórico Militar, garante igualmente que, "pelo menos nos arquivos do Exército, todos os documentos estão acessíveis" dentro dos limites impostos pela lei. "Não conheço nada que não esteja disponível por classificação de segurança", sublinha ao DN, qualificando como "um mito" a ideia de que há um manto de secretismo em torno dos documentos militares. "Agora tem-se falado muito do massacre de Wiriyamu. O relatório de Wiriyamu está disponível. Em vez de imaginar que é muito secreto, o melhor é ir ver, consultar" os arquivos, defende.

A experiência de vários historiadores ouvidos pelo DN é distinta. Irene Flunser Pimentel, que tem defendido que os 50 anos do 25 de Abril (que se cumprem em 2024) devem dar o mote para abrir toda a documentação histórica relativa ao Estado Novo e à Guerra Colonial, não aponta aos dias de hoje, mas tem bem viva a memória de quando avançou para a tese doutoramento. Os entraves no acesso às fontes foram de tal ordem que acabou por mudar o objeto da investigação: "Ia fazer a tese de doutoramento sobre a Guerra Colonial, mas acabei por desistir por causa disso". Acabou por se doutorar em 2007 com um (aclamado) estudo sobre a polícia política.

Já o historiador António Araújo diz não ter particulares razões de queixa dos arquivos militares, pelo contrário: "Sempre foram dos mais abertos". Foi esta circunstância que em 2008 lhe permitiu (com António Duarte Silva) trazer ao conhecimento público quatro documentos que comprovam o uso de napalm pelas tropas portuguesas e que estavam ainda classificados, à data, como "muito secretos" ou "secretos". Só então foram desclassificados, a pedido dos dois historiadores, que contam isso mesmo no próprio estudo: "Os documentos foram localizados no Arquivo da Defesa Nacional, em Paço de Arcos (...), tendo sido desclassificados a pedido dos autores". "Não tiveram problema nenhum em desclassificar", relembra o historiador, mas acrescentando que faz sentido "clarificar, de uma vez por todas, que os documentos são acessíveis."

Fernando Rosas não tem dúvidas de que há barreiras no acesso à documentação guardada em arquivos militares, quer pela documentação que está classificada, quer pelo facto de ainda haver muito material não tratado. "Na minha experiência, há as duas situações. Ainda sou do tempo em que, para se consultar o Arquivo Histórico Militar, era preciso quase meter uma cunha ao general, eram precisos uns conciliábulos, era muito difícil. Com o Aniceto Afonso [como diretor] isso mudou substancialmente, passou a ser um arquivo com regras. Mas depois acho que decaiu. E um arquivo decaído facilita a existência de critérios, formais ou informais, de restrição do acesso. As duas coisas conjugam-se", argumenta o historiador, falando "numa espécie de burocracia cinzenta em que ninguém se interessa muito pelo arquivo". Mas em que também "não há boa vontade dos responsáveis militares no que toca à facilitação do acesso a certos tipos de documentação" - "A memória da Guerra Colonial continua a ser, por vezes, traumática."

Carlos Matos Gomes, capitão de Abril, coautor de A Guerra Colonial, é um frequentador assíduo dos arquivos militares e também aponta como principal problema a falta de recursos e a consequente falta de organização da documentação disponível. "Não há uma questão política de secretismo, até porque o Exército tem os seus arquivos abertos, é uma questão de falta de meios e organização", diz ao DN. "Julgo que a presidência do Conselho de Ministros, porque é um assunto interministerial, deveria nomear uma comissão de pessoas ligadas aos arquivos que verificasse em que moldes e que regras existem para estes arquivos, para saber o que há, porque não fazemos ideia", destaca Carlos Matos Gomes, defendendo que "não é preciso fazer uma lei nova, é preciso tornar eficaz o que já existe".

Quanto à questão do secretismo, ela não se põe em relação ao que está nos arquivos, mas ao que lá não está: "Há arquivos secretos fechados em gabinetes há 50 anos". Exemplo? "O caso do navio Angoche, do qual não se sabe nada. Sabe-se que há um processo, mas está fechado."

O DN questionou o Ministério da Defesa sobre os arquivos que estão sob a sua tutela e a política seguida quanto à acessibilidade dos documentos, mas o gabinete de Helena Carreiras não respondeu.

susete.francisco@dn.pt

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