Ara Malikian não se lembra com que idade começou a aprender a tocar violino. "Acho que toco desde que nasci", diz, entre risos. E depois, "mais a sério", lá conta as suas memórias: "O meu pai era violinista e era um fanático do violino e da música, ele era um músico erudito e era isso que queria fazer mas ganhava a vida tocando música tradicional árabe, costumava tocar com uma cantora pop muito conhecida chamada Feyrouz. Quando eu nasci ele decidiu por mim que eu iria ser músico: pôs um violino ao meu pescoço e ele nunca mais saiu de lá." Mais risos. "Foi o meu pai quem me ensinou violino, foi o meu professor até aos 15 anos. Era um professor muito exigente, na verdade era uma pessoa muito exigente. Era muito duro comigo, obrigava-me a praticar muitas horas. Eu queria ir brincar com os meus amigos e ele não me deixava. Às vezes eu até chorava porque não queria tocar mais, mas hoje em dia estou-lhe muito agradecido por me ter obrigado a praticar tanto. Sou muito feliz e não imagino como seria a minha vida sem o violino.".Hoje, não trocaria o seu violino por nenhum outro instrumento: "Há um repertório clássico muito bom para violino mas ao mesmo tempo é um instrumento muito cosmopolita, está presente em todas as culturas e em diferentes estilos, da China à América do Sul, passando pela Europa. E além disso o violino é um instrumento muito maroto. Pode fazer melodias lindas e ser muito romântico mas também pode fazer coisas muito diferentes, é por isso que se costuma comparar o violino ao diabo, pode ser estridente e quase até ferir-nos os ouvidos.".Ara Malikian tem 50 anos e nasceu em Beirute, no Líbano. Aos 15 anos deixou o país e mudou-se sozinho para a Alemanha. "Foi provavelmente a mudança mais importante da minha vida", reflete. "Havia uma guerra no Líbano e não havia oportunidades para os jovens, as escolas estavam praticamente fechadas, o país estava destruído, o futuro era muito incerto. Todas as pessoas que tinham oportunidade saíam do país. O meu pai decidiu que eu ia estudar para fora, então eu concorri a uma série de bolsas em vários países e fui aceite na Alemanha." Lembra-se de estar assustado por mudar para um país onde "não conhecia nada nem ninguém". "Mas também havia uma certa inconsciência - naquela altura eu nem me apercebi, mas hoje que penso nisso, eu tinha 15 anos e fui para um país estrangeiro completamente sozinho. Deve ter sido muito difícil para os meus pais, eles foram muito corajosos em deixar-me ir.".Passou então a viver sozinho e a tomar todas as decisões da sua vida. "Tive muita sorte porque tinha a música e tinha o meu violino, ocupava o meu tempo a praticar. Podia ter ido por direções perigosas e claro que tive oportunidade, quando se é novo queremos experimentar tudo e eu experimentei mas voltava sempre ao meu violino, estava muito focado. Eu sabia que era muito difícil para um libanês estar legalmente na Alemanha, portanto eu sabia que tinha de trabalhar se não mandavam-me embora.".No palco do Salão Preto e Prata, onde Ara Malikian se sentou um dia destes a conversar com um grupo de alunos da Academia de Música de Lisboa e de Os Músicos - Academia de Música de Miraflores, os miúdos olham intrigados para este violinista famoso. Ara fala muito baixo, com uma certa timidez, alternando com naturalidade entre o inglês e o espanhol. Veste-se de preto, lenço ao pescoço, casaco de cabedal, calças escuras como a barba e o enorme cabelo encaracolado, rebelde. Anéis grandes nos dedos das mãos..Ara está ali para satisfazer a curiosidade dos seus fãs. "Qual o músico que mais admira?", pergunta o Rafael, de 13 anos. Ele pensa um bocadinho e responde: "Há um músico que sempre me fascinou e nunca o ouvi tocar: Paganini. Ele mudou a história da música porque fez música para as massas. Foi a primeira estrela de rock." A plateia ri-se. O Rafael, que toca guitarra elétrica, tem mais uma pergunta: "Gosta de heavy metal?" Ara faz um grande sorriso: "Gosto muito de heavy metal. Creio que é muito parecido com a música barroca, ambos têm um grande poder rítmico." E faz uma revelação: o seu próximo disco terá uma colaboração dos System of a Down..O Rafael fica contente com a notícia mas não fica surpreendido porque já conhece um pouco da carreira do violinista. "Comecei a minha carreira de uma maneira muito clássica e conservadora, queria ser um músico erudito, mas depois as coisas mudaram, os meus interesses mudaram", conta ele. O que aconteceu? Depois da Alemanha, Ara Malikian morou em Londres, Inglaterra, até por fim mudar-se para Madrid, Espanha. Tinha de sobreviver e para isso começou a tocar em clubes e na rua. "Claro que não podia tocar Beethoven num bar. Pediram-me para tocar Doors e eu não conhecia. Aprendi porque fui obrigado. E isso foi o melhor que me podia ter acontecido, abriu-me a cabeça. O mundo da música clássica olha só para si mesmo e isso é muito pouco, é muito pequeno, há muitas coisas bonitas no mundo, lá fora.".A partir daí, Malikian teve oportunidade de trabalhar com "músicos de outros países, de outras culturas, de outros estilos" e também começou "a trabalhar com outras artes - teatro, dança, circo". "Isto mudou o conceito que eu tinha de um concerto. Na música clássica ensinaram-me que o músico toca para si mesmo, o mais importante é tocar bem. Num concerto, geralmente os músicos só estão preocupados com o seu instrumento ou com a música, e é uma pena porque estamos num palco e o palco é um local muito grande e temos de tirar vantagem de todo o espaço, assim como temos de tirar vantagens do nosso corpo e daquele momento em que estamos com outras pessoas", explica. "O palco é um local mágico e muito espiritual. Eu tenho a responsabilidade de fazer aquelas pessoas felizes e para isso não basta ter uma boa técnica, não basta saber as notas. Temos de estar lá de corpo, alma e coração.".Hoje em dia, Malikian já não gosta de fazer qualquer diferenciação entre música clássica, rock ou jazz, diz, respondendo a uma pergunta de António, de 13 anos: "Gosto de tocar, não gosto de pôr etiquetas. Para mim é tudo música." Isto mudou a sua vida. "Encontrei novos objetivos, uma nova inspiração. Agora sinto que tenho mais espaço para crescer, para aprender e para criar coisas novas. Quando era músico erudito estava sempre a tocar as mesmas composições, a fazer os mesmos concertos, mas assim que saí deste meio percebi como o mundo da música clássica é tão pequeno. Sou mais feliz agora." Por isso, quando Susana, de 16 anos, quer saber quais as músicas que ele gosta de ouvir, Malikian fala-lhe de Bach, Miles Davis, de Jimmy Hendrix, de Led Zeppelin, de David Bowie e de Radiohead..É um pouco de tudo isso que vai mostrar nos seus concertos nos dias 10 e 11 de maio no Casino Estoril. A sua digressão chama-se Royal Garage Tour como homenagem à importância da garagem para os músicos: "Porque muitas bandas começaram em garagens mas não só, eu não tive nenhuma banda de garagem. Mas o meu primeiro contacto com o público foi numa garagem, porque quando a guerra começou muitas vezes tínhamos de nos refugiar na garagem que havia por baixo do nosso edifício, era o lugar seguro quando havia bombardeamentos. Passávamos muito tempo na garagem e eu levava o meu violino, outros levaram guitarras ou instrumentos de percussão e tocávamos lá. Foi a primeira vez que percebi que ao fazer música podia fazer as pessoas felizes, apesar de estarmos numa situação difícil. A música fazia-nos esquecer aquele momento.".Ara Malikian tem um filho de 4 anos e já tentou ensiná-lo a tocar violino mas ele não mostrou qualquer interesse. "Eu não tenho a mesma personalidade do meu pai, por isso não vou insistir. Vou deixá-lo ser ele a escolher", diz. "Cada pessoa é diferente e ainda bem que somos todos diferentes." Aos jovens que estão agora a aprender um instrumento, deixa alguns conselhos. Antes de mais que pratiquem, que pratiquem muito mas sem exagero - "Eu estudava violino oito ou nove horas por dia mas creio que mais importante do que estudar muitas horas é a constância, é importante estudar todos os dias, nem que seja dez minutos. Parece-me que é a melhor maneira de evoluir e aprender a disciplina, até que tocar se torna um hábito, algo indispensável como lavar os dentes ou tomar o pequeno-almoço.".Depois, que os jovens procurem aquilo que os faz verdadeiramente felizes. "Eu ainda toco música clássica", diz Ara Malikian aos jovens portugueses. "Mas toco à minha maneira. Quando era estudante, como vocês, diziam-me: não se toca Bach desta maneira, estás a fazer mal. E eu odiava que me dissessem isso. Há tantas maneiras de tocar. A coisa boa da arte é que cada artista pode ter a sua personalidade. Não sei se há uma maneira certa ou errada de tocar - mas sinto-me feliz a fazê-lo assim." E lembra uma frase de Beethoven: "Tocar a nota errada é desculpável, mas tocar sem coração não tem desculpa.".Concertos de Ara Malikian.10 e 11 de maio Casino Estoril Bilhetes entre 32,50 e 50 euros