Trata-se de universalizar uma mensagem e de constatar que, em face da globalização, da revolução digital (ou melhor: da imposição digital), o retrato que aqui se fará é talvez injusto, catastrofista, pessimista ou, quando não - dirão alguns -, feito por alguém que deixou de ter esperança no futuro. Mas não deixámos de ter esperança no futuro. Se falo aqui do "apetite pela destruição" é porque, ao contrário das promessas de uma "escola para a felicidade" (expressão ingénua, infantil e doutrinária), todos nós vemos o óbvio: os "nativos digitais" vivem entre o fascínio pelos influencers (o mau gosto, a superficialidade, a estupidez como virtudes) e a alienação, a boçalidade e a ignorância que tudo formatam. Perante as malhas dum império digital brutalizante, é natural que os estudantes não encontrem um verdadeiro sentido para as razões que os deveriam levar a ler bem, a escrever melhor e a pensar criticamente. Perante estes factos, a Escola o que faz? Segue a moda, obedece aos ditames do ME: digitalizar, padronizar, formatar, descerebrar os estudantes (é ver os manuais escolares, é ver as imposições do Projeto Maia)..O apetite pela destruição? Causa e consequência. As crianças na escola portuguesa estão a ser roubadas da sua imaginação. Sem curiosidade em relação ao mundo que as rodeia, cedo se transformam em adictos digitais, afundados nos ecrãs. Se na primeira infância a criança era ainda ingénua, espantando-se com o mundo, a verdade é que, por volta dos 10, 11 anos, à criança que lia, que desenhava, que se deixava espantar, sucede, por causa dos telemóveis e outros aparelhos, o adolescente seco de espírito e de ânimo. Sempre nervoso, ou adormecido, avesso à curiosidade intelectual, o adolescente e futuro universitário, salvo exceções, é inimigo de tudo quanto seja exigência, descoberta e esforço. A Escola onde todos transitam sem nada saberem, onde se nivela por baixo, onde o quotidiano é uma amálgama de burocracia e projetos falhos de real valor - a Escola é cúmplice no crime que estamos a cometer contra crianças, adolescentes e jovens adultos. Os pais, compreenderão eles que são os seus filhos, sem imaginação e cultura, carne para canhão do mercado de trabalho onde empresas estrangeiras pagarão pobremente aos jovens licenciados? Hoje pede-se à Escola que tudo resolva: a violência, o saber estar, o saber ser. Na camisa-de-forças em que muitos lecionam, quem haverá que se insurja e diga que a Escola não pode e não deve reproduzir modas, gostos e opiniões duma sociedade alienada e bestial?.Factos: quantos - pais e professores, educadores dos mais diversos graus de ensino - não se queixam, impotentes, da falta de conhecimentos básicos por parte dos adolescentes que frequentam o 3.º ciclo, o Secundário? Quantos, no 1.º ano de Ensino Superior, não se questionam acerca do que aprendem os estudantes em 12 anos de escola? Como escrevem tão mal? Como não têm qualquer interesse pelo saber? Em empresas, em setores do Estado, grassa a impreparação de futuros advogados, médicos, engenheiros, jornalistas, professores, arquitetos. Que dizer dos políticos de agora? Apetite pela destruição, pois. A aceleração da vida atual e os "desafios" (não há dificuldades no novo mundo das relações computacionais) que se colocam à nossa geração e aos vindouros, outra coisa não são senão a imposição global do "homo laborans" de que fala Byung-Chul Han em A Sociedade do Cansaço. A Covid-19, a dita transição digital visa substituir os antigos setores primário, secundário e terciário, ainda com um pé nos ritmos e competências do século passado, por um novo tipo de relações de trabalho e de relações humanas guiadas, doravante, pela frieza maquinal do novo humano. Ideais ditos progressistas não faltarão. É a construção do mundo-empresa, onde todo e qualquer um será apenas um número para os grupos económicos do digital, o que a Europa sem professores e sem cultura está a construir. Espelho fiel desta mudança civilizacional? Inteligência Artificial, que Yuval Harari, em conferência inspiradora, analisou. Mas, e sobretudo, as crianças e adolescentes, reféns do digital, oscilando entre a insensibilidade e a incuriosidade (é ver o seu olhar); entre a raiva e a inquietação (pressentem que não há futuro, estudem ou não, em Portugal). O único paliativo que os acalma é, claro, o digital. A História nada lhes diz, a Literatura e as Artes, a Política e a Economia, as Ciências... tudo isso é o Passado. No indiferentismo atual só o Ego lhes importa, só o imediato que o Deus-dinheiro dá lhes interessa. O professor culto? Detestam-no. Ele é o passado, a memória, a lentidão, a exigência. Preferem o professor cool, "digitaliza- do", inovador, moderno, que faz das aulas, "conversas". Esse é o "profissional da educação", exímio fazedor de folhas Excel, que não lê porque não tem tempo, já que está ao serviço "do rigor e da excelência". São, todos, filhos da pandemia: a nova Humanidade acéfala, maquinal, insensível. Filhos do Grande Nada, a última ideologia. Os novos bárbaros..Livro: A Barbárie da Ignorância, ed. Fim-de-século, 1999. Autor: George Steiner.Sinopse: Pessimista, mas realista, neste livro premonitório, Steiner interroga o sentido para que nos dirige a cultura da barbárie. Que sentido pode emergir das ruínas do século XX? Hoje, em 2023, este livro é atual porque é já possível questionar que sentido pode emergir das ruínas destas primeiras décadas do século XXI. As injustiças sociais prolongam-se, fruto da educação da incultura, delapidando as energias de uma Europa que, sem livros, sem memória e sem linguagem, pode já não saber o sentido de Sísifo na sua existência e pode, sem uma educação centrada no livro, ser esse continente onde a Morte é o único fim porque não há utopia, pois tudo é agora desconstrução, niilismo absoluto..Professor, poeta e crítico literário