A "fobia dos pobres", ou "aporofobia", é um risco vital para a democracia, explica-nos, nesta entrevista. Do nacionalismo emergente na Europa, aos discursos anti-imigração. "A palavra aporofobia era necessária porque há rejeição dos pobres, mas como não tem uma realidade física, não pode ser apontada e é por isso que precisamos de uma palavra para designá-la, para reconhecer sua existência", explica Adela Cortina, que foi uma das oradoras no III Congresso Internacional de Filosofia, que decorreu na Universidade da Beira Interior, na Covilhã..O que foi mais importante para decidir dar um nome à fobia em relação aos pobres?.Foi ter-me apercebido de que os pobres sempre foram rejeitados ao longo da história, e ainda hoje são rejeitados. Fala-se muito em xenofobia, de aversão a estrangeiros. Mas isso não costuma ser dirigido aos turistas, nem aos estrangeiros que são contratados por uma equipa de futebol, nem a cantores, cineastas ou modelos de costura. Esses não são incomodados. Muitas vezes são ídolos. São os pobres que são desprezados, mesmo dentro da própria família..Não ter um nome afastava o problema da atenção da sociedade?.Sim. Quando as realidades não têm nome, é muito difícil reconhecer que elas existem e, precisamente porque não as identificamos, elas influenciam clandestinamente a marcha do mundo, sem serem vistas ou ouvidas. Acontece como nas ideologias, que são uma visão deformada e distorcida da realidade que defende sempre quem são os mais bem colocados para manter o seu estatuto privilegiado..Por isso citou Gabriel García Márquez, em Cem Anos de Solidão: "As coisas não tinham nome"....No início de seu excelente romance Cem Anos de Solidão, García Márquez narra o início do mundo em Macondo dizendo que "o mundo era tão recente que algumas coisas careciam de nome e para mencioná-las era preciso apontá-las com o dedo". A palavra aporofobia era necessária porque há rejeição dos pobres, mas como não tem uma realidade física, não pode ser apontada e é por isso que precisamos de uma palavra para designá-la, para reconhecer a sua existência e perguntar se concordamos com ela ou, pelo contrário, se temos de trabalhar para erradicá-la..De que forma a aporofobia ajuda a perceber a crescente ascensão de partidos anti-imigração e nacionalistas radicais na Europa?.Os partidos anti-imigração são declaradamente aporofóbicos, rejeitam refugiados políticos e imigrantes pobres porque dizem que não podem trazer nada de bom, apenas problemas. Neste ponto, as notícias falsas que são difundidas para rejeitar os imigrantes funcionam de maneira escandalosa. Os partidos nacionalistas também são aporofóbicos porque distinguem entre "os nossos", os da nossa nação, os que eles consideram superiores, quer o digam abertamente ou não, e "os outros", que eles consideram inferiores. Essa diferenciação é perversa, porque os seres humanos são iguais em dignidade..Existe alguma ligação entre o medo dos pobres e o modo como os refugiados que procuram entrar na Europa são vistos?.Claro, e isso é insustentável. É por isso que a União Europeia tem de tomar medidas para responder de forma ordeira e institucional aos que fogem da guerra, da intolerância e da miséria. Primeiro, trabalhando nos países em conflito para acabar com a violência; e, em segundo lugar, aprovando medidas concretas para integrar aqueles que precisam. Felizmente, já começámos a fazê-lo, especialmente com a liderança de Macron e Merkel..O aumento da desigualdade está a pôr as democracias em risco?.Claro. Para que uma democracia funcione adequadamente, é necessária uma certa homogeneidade, uma certa igualdade, não pode coexistir com desigualdades radicais. É por isso que um dos grandes objetivos do século XXI deve ser erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades, tanto local quanto globalmente..Tony Judt falou sobre o período do pós-guerra na Europa, e sobre a força da social-democracia naquele período, como a "banalidade do bem". Hoje, essa ideia é apenas uma memória longínqua?.É muito mais do que uma memória, é um projeto que tem de ser realizado na política e na vida social, mas agora em tempos de globalização. Porque é a melhor fórmula que encontramos para proteger os direitos humanos, reconhecida na Declaração que neste ano celebra 70 anos..Politicamente, a pobreza entra nas campanhas eleitorais - desemprego, assistência social, pensões de velhice. Esse debate é claro? Ou o preconceito contra a pobreza domina a maneira como se formam as convicções?.Os partidos políticos devem lembrar-se de que o direito de escapar da pobreza é um direito humano que deve ser protegido no século XXI. Por isso, têm de propor medidas concretas nos seus programas, nas campanhas eleitorais e nas ações do governo. Não para manipular o discurso para obter votos de um setor ou outro, mas porque é uma obrigação social dar o poder aos pobres para saírem da pobreza..O que considera mais importante para combater a aporofobia?.Reconhecer que existe, estarmos conscientes de que todos os seres humanos têm a tendência para relegar para um plano secundário aqueles que acham que não podem trazer-nos benefícios, e contrariar essa tendência cultivando o sentido de justiça, de compaixão. Isso faz-se através da educação e criando instituições..E o que é mais prejudicial: a vergonha individual de ser pobre, a intimidação e o distanciamento social, ou a maneira pela qual a sociedade ignora a pobreza?.As duas coisas estão ligadas. O pobre acaba interiorizando que é responsável e a sociedade torna-o invisível, coloca-o entre parênteses. Mas é importante lembrar que a pobreza não é apenas económica: em todas as situações sociais os pobres são os vulneráveis, os desprezados pelo grupo, com os quais ninguém se quer relacionar, porque não podem devolver favores.