Apocalipses fofinhos

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Tão resistente a definições estáveis e bem-comportadas como qualquer outro sub-género, a fábula pós-apocalíptica gosta sobretudo de simplicidade. Mais do que a oportunidade para pegar em espingardas, ou para passar raspanetes morais ao presente, o que realmente a encanta é o potencial de um mundo sublotado.

Quando começaram a ser usados na ficção, os fins de mundo tinham origens predominantemente naturais, e deixavam uma mão cheia de felizardos com saúde para brincar aos Robinson Crusoes entre as sobras da civilização. Foi só depois de Hiroshima, quando a ideia de um holocausto nuclear se tornou menos abstracta, que os escritores de ficção científica começaram a deslocar as ênfases, procurando pontos de equilíbrio entre os preconceitos anti-tecnológicos dos sobreviventes e o apelo surpreendentemente duradouro da possibilidade de destruir toda a tralha acumulada num cenário abarrotado (e todo o lastro de complicações sociais e culturais associadas), e começar de novo, do zero, numa página em branco.

Uma sub-sub-categoria começou a surgir nesta altura, na mesma Inglaterra que já tinha uma especialização em fantasias tendencialmente luditas. Brian Aldiss na sua história da ficção científica (Billion Year Spree, 1973) chama-lhe "cosy catastrophe": catástrofes acolhedoras, desastres aconchegantes, apocalipses fofinhos. São histórias em que o fim do mundo abraça com menos constrangimentos a sua condição de subterfúgio. Tendem a apresentar ao leitor uma estrutura narrativa concebida mais para gerar momentos de bucólica contemplação do que para conduzir protagonistas a um qualquer triunfo inequívoco sobre as adversidades - em parte porque as adversidades não são assim tão adversas.

A principal intenção de Aldiss era menosprezar algumas ficções de John Wyndham, como Day of the Triffids e The Kraken Wakes, em que pandemias de cegueira, infestações de plantas carnívoras, e invasões alienígenas são relatadas (e ultrapassadas) por imperturbáveis narradores de classe média, mas talvez o melhor ponto de referência seja outro dos livros que menciona: The Hodgkins Manuscript, uma curiosidade publicada em 1939. Narrado por um ex-reitor de liceu que se auto-exilou para um idílio rural, o livro começa na hora do sagrado chá das cinco, brevemente interrompido pela súbita colisão da lua com a Terra, mas prontamente retomado. O fim do mundo é apenas algo que acontece entre infusões, biscoitos, e leituras.

Station Eleven, de Emily St. John Mandel, ganhou o prémio Arthur C. Clarke em 2015 e vendeu mais de milhão e meio de cópias em todo o mundo (há uma tradução portuguesa da Editorial Presença) com uma versão actualizada deste tipo de fábula. Há algo involuntariamente hilariante na sua premissa básica, que se pode desonestamente resumir como "não há electricidade, nem refrigeração, nem saneamento básico, portanto vamos dedicar-nos ao teatro isabelino". Um dos focos da história é precisamente uma companhia de teatro ambulante, em digressão permanente entre as ruínas, a encenar peças de Shakespeare. Em ousado contraponto à dupla tradição da fábula pós-apocalíptica, que concede o privilégio da sobrevivência aos portadores das diversas patologias cruzadas do sobrevivencialismo (de um lado os que gostam de espingardas e violação, do outro os que gostam de chá e sossego), Station Eleven postula um pós-apocalipse povoado por refugiados do teatro amador, repetentes do Chapitô, e outros órfãos avulsos da animação cultural.

Em defesa de Mandel, o grupo de teatro acaba por funcionar mais como um mecanismo de conveniência narrativa, do que propriamente como um andaime temático; a sua função é tanto "significar" coisas solenes como levar as personagens de um lado para o outro. E embora o livro nunca descarte totalmente uma certa aura de "conversa-na-esplanada-da-FCSH-sobre-a-importância-das-Humanidades", há também uma fluência verbal e imaginativa que justifica amplamente a atenção que recebeu.

Uma adaptação era inevitável e foi acelerada pela pandemia (o apocalipse do livro é provocado por uma gripe que vem do Oriente) Depois de alguns falsos alarmes, uma mini-série estreou esta semana na HBO Max; a julgar pelos primeiros três episódios, não só é melhor do que o livro, como é a melhor das múltiplas tentativas televisivas recentes de fazer algo interessante com o pós-apocalipse, uma premissa que parecia perigosamente próxima do esgotamento.

No essencial (as personagens e as posições que ocupam), a série respeita o enredo do livro, mas introduz um conjunto de alterações que quase invariavelmente melhoram o material de origem. Algumas das diferenças são de mera qualidade de execução. Enquanto Mandel coloca com frequência personagens a declamar ansiosamente resumos das suas personalidades para benefício do leitor, a série explica pouco e prefere demonstrar por exemplo. No segundo capítulo, quando uma personagem recebe um telefonema crucial do seu melhor amigo, o livro não consegue melhor diálogo que uma palestra de anfiteatro ("Quero que me digas a verdade, vais ter um dos teus ataques de pânico se eu te contar uma coisa muito má?" "Não tenho um ataque de pânico há três anos, o meu médico disse-me que era uma situação temporária relacionada com o stress, como tu sabes", "Já ouviste falar nesta Gripe da Georgia?" "Claro, tu sabes que eu gosto de acompanhar as notícias"). Como tu já sabes, cara personagem, estas são as coisas que o leitor também precisa de saber.

Através de algumas simples mas engenhosas rearrumações estruturais, a série consegue quase sempre transferir o ónus de informar para justaposições de imagens ou, no limite, diálogos entre pessoas que não são amigos de longa data. Encontra também mais espaço para um tipo de humor que subverte qualquer ímpeto de solenidade: a notícia de uma morte trágica é entregue com um erro de ortografia; e um penoso monólogo interno (no livro) em que uma personagem reflecte sobre a dificuldade em encontrar uma "vocação" é substituído por uma piada tangencial sobre "criação de conteúdos". Nada se perdeu, excepto alguns lugares-comuns.

Nenhuma outra série recente usou tão bem o cada vez mais popular mecanismo de enrolar duas linhas narrativas temporais numa espiral de sequências sucessivas. Uma sequência ofegante no segundo episódio desfaz-se num rodopio de prolepses e analepses, que alternam com uma encenação de Hamlet. Poderia parecer péssima ideia cotejar deixas de Shakespeare com texto contemporâneo pois a comparação vai desfavorecer inevitavelmente o mesmo lado ("as vestes e ornamentos da desgraça" versus "recebi um SMS esquisito") mas a montagem é feita com um tão raro sentido de ritmo e timing que a coisa funciona.

Funciona também por perceber algo fundamental sobre a barafunda delirante que deve sustentar qualquer tentativa de realismo, seja qual for o sub-género em que se encaixe: que nada é apenas uma coisa, e que nenhuma situação, por mais tematicamente óbvia que pareça, vai despertar apenas uma emoção. Um dos triunfos do terceiro (e melhor) episódio é o modo como consegue colocar o actor Timothy Simons (o Jonah de Veep, uma das figuras físicas mais instantaneamente cómicas à face da Terra) a arrancar um genuíno momento comovente com a mera confissão de que foi jogar golfe.

O momento é comovente, mas não só. Também é ridículo, e desconfortável, e desnecessário. Na sua síntese inesperada de sentimentalismo melodramático, humor absurdo, lirismo acidental, e desinteresse na sua própria organização, a série que os três primeiros episódios mais evocam é The Leftovers (e não foi um choque saber que o criador, Patrick Somerville, escreveu alguns episódios).

São vários os momentos em que a adaptação encontra soluções simultaneamente mais elegantes e mais originais do que as do livro, soluções quase sempre ancoradas na forma como resiste à tentação de colocar as personagens a recitar o subtexto, deixando-as com tempo e espaço suficiente para fazerem e dizerem coisas inúteis e absurdas - o tipo de ineficiência estratégica que melhor produz um realismo fortuito, e cuja ausência mais se nota em muita televisão contemporânea, toda ela cheia de diagramas e cábulas para o espectador. O elenco de Station Eleven também vem equipado com as obrigatórias fichas clínicas, currículos psiquiátricos, memórias sugestivamente traumáticas, ansiedades mediadas, e fantasias em segunda mão - mas não são apenas isso. São também impulsos erráticos, reacções inesperadas, gestos incompreensíveis. Em vez de se deixar seduzir pela ideia abstracta de auto-suficiência, a série prefere reservar essa virtude para cada personagem apenas em cada cena de cada episódio. O mundo deles pode ter acabado, mas consegue criar para o espectador um novo, que ainda não existia.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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