Monica Vitti. Apagou-se a mulher-cinema

Morreu uma das últimas lendas dos anos 1960 do cinema italiano. Monica Vitti, a mulher dourada de Antonioni. Uma estrela de cinema que partiu ontem aos 90 anos.
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A vantagem de quando um amante de cinema fala de Monica Vitti é que pode ser mitómano. Aquelas frases de ser um monumento de luz, um milagre de cinema ou a maior atriz que uma câmara pode captar não passam por exagero. Esta atriz que veio do teatro e que se tornou musa Antonioni era isso e tudo o mais. Aliás, todas as possibilidades de cinema passavam por ela, em especial a vertigem do vazio e a ternura da comédia. O cinema italiano perdeu ontem um dos seus símbolos, apesar de se ter retirado da vida pública há duas décadas em virtude da doença de Alzheimer.

Maria Luisa Ceciarelli, esse era o seu nome, convocava uma beleza mais próxima do mistério do que do neorrealismo. No cinema de Michelangelo Antonioni, também seu par na vida real durante certo período, nunca era a loura cliché que preconizava o estilo da starlette italiana. Era outra coisa, algo entre um puro drama desencantado e a própria incomunicabilidade trágica do ser humano. No limite, o seu olhar evocava um certo desejo de perda, talvez algo que não se possa medir com palavras. Por isso, era uma conjugação perfeita de símbolo de uma ideia de mulher-cinema, crepúsculo de uma modernidade artística criada pelo mestre Antonioni, o tal que se apaixonou por ela primeiro do que todos nós e que no começo terá ficado impressionado pela sua nuca.

Da coleção dos seus maiores tesouros estão todos os Antonioni mais consensuais, os do período dos anos 1960: de A Aventura (1960), a A Noite (1961), passando por O Eclipse (1962) até O Deserto Vermelho (1964). Bastava o seu rosto e o cinema de Antonioni acontecia, explodia e interrogava as mentes de quem aderia. Depois, mais tarde, reinvenção para se tornar a rainha da comédia italiana. Nos anos 1970 uma comédia italiana não era sinónimo da atual bagunça, era antes um estremecimento de humor inteligente e de uma singularidade tão única. E que bem o seu sorriso ficava em filmes como Os Laços do Matrimónio (1970) ou Pó de Estrelas (1973), no período de Alberto Sordi ou sucessos como Pato com Laranja (1975), de Luciano Salce, que quando foi exibido na estação pública portuguesa originou um debate sobre decência, e Nós as Mulheres Somos Assim (1971), de Dino Risi. Provas de um registo extremamente divertido e icónico. Disso e de algo que não se compra: um indomável carisma de estrela.

Mas se há duas La Vitti, a da comédia e a dos espetros Antonioni, é nos filmes do ex-companheiro que está tudo. Juntos formaram uma parceria de desgosto e de vazio, coisa que não se repete. Um corpo, um rosto em perda. A tal sensualidade que não se explica, que apenas é para ser vivida numa plateia de um cinema bem escuro. Porque no contraste do seu cabelo louro tem de se convocar realmente escuridão, pelo menos parecia ser esse o pacto de Antonioni. Daí que o golpe de rins para o registo da comédia popular tenha uma parte substancial de reviravolta. Terá sido uma experiência de se colocar em causa. Do rosto romântico magoado moldava-se uma alegria que era rejubilante, em plena sintonia com uma ideia de festa dos sentidos de uma Itália a entrar nos "loucos" anos 1960. Monica era um símbolo de uma certa emancipação sexual das mulheres, muitas vezes a jogar de forma cómica com o efeito que a sua beleza tinha sobre os homens.

À parte disso, foi convidada por Losey em A Mulher Detetive (1966) e por Roger Vadim no seu auge, Castelo na Suécia (1963). A sua ligação com Hollywood foi com o cineasta Michel Ritchie em Romance no Festival (1969), comédia romântica situada no Festival de Cannes que não reza a história.

A nível de prémios, foi uma vez nomeada para os BAFTA, os prémios da Academia britânica, e venceu cinco vezes o prémio de melhor atriz nos Donatello, os Óscares italianos. No Festival de Veneza foi ainda agraciada com o Leão de Ouro de carreira.

Monica Vitti pode ter tido agora o seu eclipse definitivo mas todo o cinéfilo saberá que nunca será esquecida. Diva, ícone e sobretudo mestre da cinegenia interior. Se no cinema de Antonioni não havia deus e sobrava o contracampo, na beleza em movimento de Monica a religião era outra. Antes da atriz apareceu sempre a mulher. Uma mulher com uma voz sulfurosa e um olhar tão vago como perdido. A aventura prossegue nestes meandros da memória...

dnot@dn.pt

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