Um amigo, o psiquiatra e professor Elie Cheniaux, mandou-me um cartão de feliz 2019 ilustrado por uma cena de Todos Dizem Eu Te Amo, a sublime comédia musical de Woody Allen, de 1996. Elie é coautor (com J. Landeira-Fernandez) de um livro surpreendente e terrível, Cinema e Loucura - Conhecendo os Transtornos Mentais através dos Filmes, de 2010. Woody é um de seus heróis, juntamente com, entre outros, Billy Wilder, Nelson Rodrigues, Freud, Van Gogh e Zico. Exceto, naturalmente, Freud, ninguém lhe deu tantos motivos para reflexão científica quanto os personagens de Woody..Mas enviar, hoje, um cartão de boas-festas com uma imagem de Woody Allen passou a exigir certa coragem. Em 2018, a campanha nos Estados Unidos para destruí-lo como artista e como homem parece ter sido vitoriosa. Woody tem um filme pronto há um ano, A Rainy Day in New York, e sem previsão de lançamento porque a produtora, a Amazon, teme que um boicote decrete seu fracasso na bilheteria. A acusação de ter abusado de sua filha adotiva Dylan Farrow quando ela tinha 7 anos, iniciada meses depois do suposto facto por sua ex-mulher, Mia Farrow, e ultimamente martelada em todos os veículos pela própria Dylan, provocou um repúdio universal por ele. Essa acusação nunca foi provada, mas quem quer saber? Aos olhos de muita gente, Woody tornou-se um doente, um monstro, um criminoso..Com raras exceções, os filmes de Woody Allen sempre foram sucesso de estima, não de público. Atingem apenas as camadas mais intelectualizadas das grandes cidades, o que os torna dependentes de produtores que os banquem somente pelo prestígio. Da mesma forma, todos os grandes astros que apareciam neles o faziam apenas pela glória de trabalhar num filme de Woody Allen - e o faziam quase de graça. Isso, agora, acabou. Vários atores, inclusive os que participaram do inédito A Rainy Day in New York, já deram declarações de que nunca mais voltarão a trabalhar com Woody Allen ou que doarão para a caridade seus cachês por este filme. Mesmo que nenhum deles, homem, mulher ou criança, neste ou em qualquer filme de Woody, tenha sido molestado por ele..Alegar que as pessoas deveriam separar o Woody Allen artista do Woody Allen homem - assim como se fez com o poeta Ezra Pound, o romancista Louis-Ferdinand Céline e o filósofo Martin Heideger, simpatizantes confessos do fascismo ou do nazismo - implicaria admitir que Woody teria de facto abusado de sua filha. Equivaleria a condenar de novo Oscar Wilde pelos crimes que ele não cometeu. Mas já não adianta argumentar. Está em curso um assassinato cultural e que pode resultar numa morte física. O que será de Woody Allen sem filmar? Aos 83 anos, ele já passou da idade de buscar uma coisa nova para fazer..Se seu filme pronto e engavetado tem poucas chances de ser exibido, pode-se presumir que Woody nunca mais encontrará quem financie os filmes que ainda poderia fazer - e sua média, desde sua estreia como diretor em 1969, era de um filme por ano, para deleite de seus fãs, dos críticos e, desde há muito, dos historiadores do cinema..E este é o ponto. Um articulista da revista The New Yorker perguntou-se outro dia se ainda poderíamos gostar dos filmes antigos de Woody Allen. Essa pergunta me chocou. Significa que teremos de rever seu passado à luz das acusações que lhe foram feitas no futuro e nem sequer foram provadas? Parece que sim. Os verdugos de Woody não se limitarão a extirpá-lo do cinema de agora em diante, mas a partir do próprio dia em que ele começou a filmar - ou, quem sabe, do dia em que nasceu. Será como se nunca tivesse existido. Essa prática não é nova. Era comum na URSS do ditador Estaline, cujos ex-aliados, caídos em desgraça e obrigados a confessar os piores desvios burgueses, "sumiam" de repente, apagados dos documentos, das fotos e da própria história..Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, Carnaval no Fogo - Crônica de Uma Cidade Excitante demais, sobre o Rio (Tinta-da-China).
Um amigo, o psiquiatra e professor Elie Cheniaux, mandou-me um cartão de feliz 2019 ilustrado por uma cena de Todos Dizem Eu Te Amo, a sublime comédia musical de Woody Allen, de 1996. Elie é coautor (com J. Landeira-Fernandez) de um livro surpreendente e terrível, Cinema e Loucura - Conhecendo os Transtornos Mentais através dos Filmes, de 2010. Woody é um de seus heróis, juntamente com, entre outros, Billy Wilder, Nelson Rodrigues, Freud, Van Gogh e Zico. Exceto, naturalmente, Freud, ninguém lhe deu tantos motivos para reflexão científica quanto os personagens de Woody..Mas enviar, hoje, um cartão de boas-festas com uma imagem de Woody Allen passou a exigir certa coragem. Em 2018, a campanha nos Estados Unidos para destruí-lo como artista e como homem parece ter sido vitoriosa. Woody tem um filme pronto há um ano, A Rainy Day in New York, e sem previsão de lançamento porque a produtora, a Amazon, teme que um boicote decrete seu fracasso na bilheteria. A acusação de ter abusado de sua filha adotiva Dylan Farrow quando ela tinha 7 anos, iniciada meses depois do suposto facto por sua ex-mulher, Mia Farrow, e ultimamente martelada em todos os veículos pela própria Dylan, provocou um repúdio universal por ele. Essa acusação nunca foi provada, mas quem quer saber? Aos olhos de muita gente, Woody tornou-se um doente, um monstro, um criminoso..Com raras exceções, os filmes de Woody Allen sempre foram sucesso de estima, não de público. Atingem apenas as camadas mais intelectualizadas das grandes cidades, o que os torna dependentes de produtores que os banquem somente pelo prestígio. Da mesma forma, todos os grandes astros que apareciam neles o faziam apenas pela glória de trabalhar num filme de Woody Allen - e o faziam quase de graça. Isso, agora, acabou. Vários atores, inclusive os que participaram do inédito A Rainy Day in New York, já deram declarações de que nunca mais voltarão a trabalhar com Woody Allen ou que doarão para a caridade seus cachês por este filme. Mesmo que nenhum deles, homem, mulher ou criança, neste ou em qualquer filme de Woody, tenha sido molestado por ele..Alegar que as pessoas deveriam separar o Woody Allen artista do Woody Allen homem - assim como se fez com o poeta Ezra Pound, o romancista Louis-Ferdinand Céline e o filósofo Martin Heideger, simpatizantes confessos do fascismo ou do nazismo - implicaria admitir que Woody teria de facto abusado de sua filha. Equivaleria a condenar de novo Oscar Wilde pelos crimes que ele não cometeu. Mas já não adianta argumentar. Está em curso um assassinato cultural e que pode resultar numa morte física. O que será de Woody Allen sem filmar? Aos 83 anos, ele já passou da idade de buscar uma coisa nova para fazer..Se seu filme pronto e engavetado tem poucas chances de ser exibido, pode-se presumir que Woody nunca mais encontrará quem financie os filmes que ainda poderia fazer - e sua média, desde sua estreia como diretor em 1969, era de um filme por ano, para deleite de seus fãs, dos críticos e, desde há muito, dos historiadores do cinema..E este é o ponto. Um articulista da revista The New Yorker perguntou-se outro dia se ainda poderíamos gostar dos filmes antigos de Woody Allen. Essa pergunta me chocou. Significa que teremos de rever seu passado à luz das acusações que lhe foram feitas no futuro e nem sequer foram provadas? Parece que sim. Os verdugos de Woody não se limitarão a extirpá-lo do cinema de agora em diante, mas a partir do próprio dia em que ele começou a filmar - ou, quem sabe, do dia em que nasceu. Será como se nunca tivesse existido. Essa prática não é nova. Era comum na URSS do ditador Estaline, cujos ex-aliados, caídos em desgraça e obrigados a confessar os piores desvios burgueses, "sumiam" de repente, apagados dos documentos, das fotos e da própria história..Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, Carnaval no Fogo - Crônica de Uma Cidade Excitante demais, sobre o Rio (Tinta-da-China).