Há juízes de tribunais de menores que nunca a aplicaram, embora já tenham ouvido falar dela. Há procuradores que nunca a propuseram ou que já o fizeram e ouviram como resposta: "Não há candidatos." E não voltaram à solução. Há técnicos de serviço social que até desconhecem que existe como lei há dez anos. Isto, não obstante todas as campanhas e ações de formação que percorreram o país para a divulgar. Falamos da Lei n.º 103 de 11 de setembro de 2009, que regulamenta o apadrinhamento civil..A lei que muitos anunciaram como a que poderia retirar mais crianças das instituições, que mais poderia prevenir e combater a institucionalização, foi sacrificada à partida. E hoje, dez anos depois, o cenário é o mesmo de há dois, três ou cinco anos depois de ter sido aprovada: quase não há famílias candidatas e são muito poucas as crianças a quem o apadrinhamento civil é proposto como projeto de vida..Basta referir que, em 2016 e 2017, das cerca de sete mil crianças que se encontravam acolhidas em instituições só 33 e 34, respetivamente, viram este regime ser proposto como solução para a sua vida. E, das mais de 200 que estavam em acolhimento familiar, só uma criança, em cada um dos anos, o recebeu também. Tais dados constam do relatório CASA (Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens) de 2017, o de 2018 ainda não foi divulgado..Os relatórios do Ministério Público dão conta de que, de 2013 a 2017, entraram apenas 122 ações tutelares por apadrinhamento civil, mas não é certo que todas se tenham concretizado, porque a homologação pode ser por decisão judicial. Em 2017, deram entrada apenas 26 ações, o ano que ainda contou com mais pedidos por apadrinhamento foram os de 2015 e 2016, quando se registaram 34 entradas de ações deste tipo. Em 2014, foram apenas 13 e, em 2013, só dez..Mas a verdade é que a Lei n.º 103 de 2009 foi criada também a pensar em situações que já faziam parte de um quotidiano bem português, como a entrega de um filho a alguém da família - um padrinho, uma madrinha, um tio e até vizinhos - para que tivessem uma vida melhor, mas sem que isso implicasse o corte com a família biológica. "O princípio do apadrinhamento civil era proporcionar à criança um ambiente familiar, seguro, afetivo, tranquilo e caloroso, mantendo a ligação à família biológica e a outras figuras de referência da criança", explica Isabel Pastor, diretora da Unidade da Adoção, Acolhimento Familiar e Apadrinhamento Civil da Santa Casa de Lisboa. .Só que não foi assim que muitos a entenderam. Houve até quem lhe chamasse nado-morto. "Houve campanhas negativas porque se entendeu que esta lei poderia ser um atalho para a adoção, prejudicando ainda mais este processo e não como um regime que poderia dar um projeto de vida a crianças que nunca teriam a hipótese de uma medida de adotabilidade", admite Isabel Pastor, manifestando ter "pena de que não seja mais divulgada". Ao mesmo tempo que assume que há um grande desconhecimento sobre a medida e o seu impacto. "A maior parte das pessoas não faz ideia daquilo de que se está a falar", comenta..O apadrinhamento fala de uma adoção mais aberta, aquela que procura uma cultura de parentalidade mais plural e a "nossa sociedade não está preparada para ela, para o contacto com a família biológica, com outras figuras de referência para a criança". Esta lei não só não teve muita divulgação como a que teve tem sido ignorada, "as pessoas que intervêm com as famílias raramente se lembram de trazer este regime à conversa no âmbito da intervenção que estão a fazer com elas, e penso que esta poderia funcionar em muitos casos como uma parentalidade assistida e não de filiação. Os padrinhos civis exercem as responsabilidades em relação à criança, apoiando os pais que não estão capazes para o fazer", explica ainda a responsável da Santa Casa de Lisboa..Ao DN houve quem defendesse a lei e o seu objetivo, mas que assumiu nunca a ter aplicado ou proposto. Até porque "não há muitos candidatos", disseram-nos. Mas houve também quem tivesse manifestado e de forma muito direta que "isso não funciona. As famílias não querem ter chatices com as famílias biológicas e estas também não aceitam"..Nem só de adoção podem viver as crianças.Confissões e comentários que preocupam quem trabalha no sistema e que luta por mais soluções que não só a institucionalização e a adoção. Porque, como nos diziam, nem só de adoção podem viver estas crianças. Há que mudar a situação. Sofia Marques, advogada e diretora do projeto Amigos Pra Vida, que seleciona famílias disponíveis para outras formas de integração familiar é perentória ao defender: "São os magistrados, os procuradores, as CPCJ e os técnicos, no fundo os decisores no processo de uma criança, que têm de pensar que a medida existe, que faz parte da lei e que é a solução para algumas crianças.".No projeto que dirige, Sofia Marques diz haver atualmente umas 20 famílias que caminham para um regime de apadrinhamento civil. Algumas já com candidaturas entregues, outras ainda a estabelecer relação de proximidade com a criança. "Temos casos que se concretizaram há dois ou três anos e que têm corrido bem, mas também pode haver outros que não corram tão bem. Não há história no apadrinhamento civil, é um caminho a fazer, mas pode ser uma boa solução para quem não tem outra perspetiva senão a instituição", salienta. Sublinhando: "Os técnicos têm de ter a coragem de dizer que este pode ser a única solução para uma criança, que caso contrário poderá ficar esquecida no sistema.".Sofia Marques deu neste semestre uma aula sobre apadrinhamento civil numa pós-graduação da Universidade Católica sobre Direito das Crianças, "é uma primeira abordagem e começa a ser falado", admite. "Porque até aqui o que acontecia é que, mesmo quando a medida é proposta e depois se notifica o sistema para se saber se há famílias candidatas, a resposta que aparece muitas vezes é que não há. E o que se faz? Desiste-se. E a criança continua acolhida na instituição ou em família. É preciso admitir a possibilidade de se ir à procura de famílias que possam relacionar-se com estas crianças e que depois o resultado seja mesmo o compromisso pelo apadrinhamento.".A advogada defende mesmo que "não podemos continuar a ficar à espera de que as famílias caiam do céu. A maioria das situações que chegam ao apadrinhamento civil tem que ver com casos que começaram assim e que depois tiveram este resultado". O problema, salienta, é que nem sempre as casas de acolhimento têm nas suas equipas técnicas juristas que possam apoiá-las nas propostas de medidas tutelares, porque nem sequer é obrigatório, mas, se fosse, talvez mais crianças em instituições tivessem este projeto de vida e uma integração familiar que não fosse só pela adoção..Do ponto de vista psicológico, pode ser importante o contacto com a família biológica.Do ponto de vista psicológico, muitos concordam que a providência definida na Lei n.º 103 de 2009 é a melhor para algumas crianças. "Não é igual para todas, mas para algumas esta é a melhor solução", comenta a psicóloga Joana Simões Correia, do Lar Maria Droste. "Cada caso é um caso, mas há que pensar no superior interesse da criança, para umas será a adoção, para outras o apadrinhamento civil, que lhe permite manter todos os laços que já tinha.".A diretora da Unidade de Adoção, Acolhimento Familiar e Apadrinhamento Civil da Santa Casa de Lisboa, Isabel Pastor, sublinha que esta lei foi pensada e aprovada para prevenir a institucionalização e como forma de promover a desinstitucionalização. "É a medida que pode trazer grandes alterações na perspetiva da parentalidade no futuro. Por isso, penso que é preciso que haja de novo uma grande divulgação sobre o que implica.".A lei dá deveres e direitos aos padrinhos civis, mas também à família biológica. Quem a aceita, não é de facto porque pensa que pode ter acesso a algum apoio monetário, porque essa não é a conceção. "É diferente de um acolhimento familiar, que é temporário, esta solução é um projeto de vida definitivo para uma criança.".Por desconhecimento, ignorância, crença ou até resistência foi posta de lado, esquecida e ignorada. Como comprovam os dados, ano após ano, são poucas as crianças a quem é proposto este projeto de vida. Enquanto assim for, milhares de crianças não conhecem outra realidade que não a de viver numa instituição. E, nos dias de hoje, "não faz sentido", dizem-nos. "Nem só de adoção têm de viver estas crianças...".Aqui fica o que diz a lei.O que é o apadrinhamento civil?.É uma relação jurídica, tendencialmente de carácter permanente, entre uma criança ou jovem e uma pessoa singular ou uma família que exerça os poderes e deveres próprios dos pais e que com eles estabeleçam vínculos afetivos e que permitam o seu bem-estar e desenvolvimento constituída por homologação ou decisão judicial e sujeita a registo civil..Quem pode apadrinhar?.Podem ser padrinhos pessoas maiores de 25 anos, previamente habilitadas para o efeito, ficando com o poder de exercer as responsabilidades parentais..Que direitos têm os pais biológicos?.Os pais têm o direito de conhecer a identidade dos padrinhos, de dispor de uma forma de os contactar, saber o local de residência do filho, ser informados sobre o desenvolvimento e visitar o filho nas condições fixadas no compromisso judicial..Quem pode propor o apadrinhamento civil?.Pode ser uma iniciativa do Ministério Público, da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, da Segurança Social, dos pais ou de quem represente legalmente a criança. Pode até ser proposto pela própria criança, quando é maior de 12 anos..* Trabalho inserido numa investigação Especial - Crianças em Perigo, a ser publicado durante o mês de maio no Diário de Notícias