Que faz correr Clint Eastwood? Aos 88 anos (nasceu a 31 de maio de 1930), aí o temos a interpretar o papel central de The Mule. É também a sua 37.ª longa-metragem como realizador, ainda e sempre com a marca da Malpaso, a companhia produtora que fundou em 1967..Lançado entre nós com o título Correio de Droga (estreia quinta-feira), o filme inspira-se na história verídica de Leo Sharp (1924-2016), personagem que Eastwood recria no filme com o nome de Earl Stone. Sharp foi um horticultor famoso pelas suas flores, várias vezes distinguido em concursos da especialidade, até que, aos 90 anos, se transformou em "correio" ao serviço do Cartel de Sinaloa, transportando cocaína da fronteira dos EUA com o México para a zona de Detroit..Porque é que o ator/cineasta há muito reconhecido como símbolo do grande cinema de Hollywood volta a contrariar as especulações sobre o fim da sua carreira? Afinal de contas, fora em 2008, em Grand Torino, a última vez que acumulara as funções de ator e realizador (curiosamente, os argumentos de Grand Torino e Correio de Droga são ambos assinados por Nick Schenk). O que o leva a reaparecer com um filme que, através da sua muito clássica sofisticação, consegue a proeza de ser um subtil testemunho crítico das convulsões por que passa o seu país?.Na antestreia de Correio de Droga, em meados de dezembro, em Los Angeles, Alison Eastwood, filha do cineasta, deu o seu ponto de vista ao Variety sobre a hiperatividade do pai: "Funciona como uma máquina. Creio mesmo que tem um chip de robô na parte de trás da cabeça. Ele não é humano.".Palavras irónicas, sem dúvida. Desde logo, porque Alison falava também a propósito do facto de ter sido surpreendida pelo convite do pai para integrar o elenco do filme, ela que há cerca de quatro anos abandonara a carreira de atriz para se dedicar à sua linha de roupa e também à gestão de uma organização de defesa dos direitos dos animais. O convite envolvia um silencioso e enigmático jogo de espelhos, uma vez que Alison interpreta Iris, filha de Earl, personagem discreta, mas essencial, naquela que é uma das fundamentais linhas dramáticas de Correio de Droga. A saber: a possibilidade de, para além da evidente alegria que lhe traz o cultivo das suas flores, o solitário Earl reencontrar os laços afetivos da família de que se afastou, depois de se ter divorciado de Mary (Dianne Wiest), mãe de Iris..Tudo isso se desenvolve através de muitas e complexas nuances emocionais. Seja como for, fiel ao seu gosto pela austeridade dos efeitos dramáticos, Eastwood não faz um filme "demonstrativo". Ele é um modelo da arte difícil de combinar o concreto das ações com a abstração das ideias, desembocando numa visão genuinamente política - não em sentido panfletário, entenda-se, antes como elaborado retrato do modo de viver num determinado contexto. E não será arriscado apostar que, daqui a uma ou duas décadas, Correio de Droga surgirá mesmo como um objeto fundamental para a compreensão dos tempos em que os EUA foram dirigidos por um presidente chamado Donald Trump..Earl Stone é um sobrevivente. O seu envolvimento no transporte de pacotes de droga começa num misto de angústia e pragmatismo motivado pela crise do seu negócio. Mesmo evitando revelar os sobressaltos dramáticos e os detalhes psicológicos que vão pontuando a ação de Correio de Droga, digamos que Eastwood não filma exatamente a "decisão" de Earl começar a passar droga. Somos antes confrontados com o desespero de alguém que, devido à crise económica de uma certa América interior, longe dos símbolos e apoteoses das grandes metrópoles, tenta reagir ao brutal abalo que atinge a sua pequena empresa. Num mundo em que economia e criatividade estão em conflito, quem está disponível para valorizar a arte de cultivar orquídeas, essas radiosas flores cujo tempo de florescimento é de um dia por ano?.Longe vão os tempos em que, sob a direção do italiano Sergio Leone, Clint Eastwood se impôs como símbolo abstrato das epopeias clássicas do Oeste americano através da célebre trilogia formada por Por Um Punhado de Dólares (1964), Por mais Alguns Dólares (1965) e O Bom, o Mau e o Vilão (1966). O certo é que há nesses filmes uma herança individualista que não é estranha à teia temática em que a sua obra pessoal veio a desenvolver-se. E convém não esquecer que o seu primeiro filme como realizador, Play Misty for Me/Destinos nas Trevas, tem data de 1971. Mesmo quando se fixa numa personagem feminina - lembremos a personagem trágica de Hilary Swank no prodigioso Million Dollar Baby (2004) -, Eastwood persegue uma dimensão humana, porventura demasiado humana..Correio de Droga é mais um momento exemplar dessa trajetória artística, obstinadamente fiel aos valores da narrativa clássica de Hollywood, envolvendo sempre ecos, factuais ou simbólicos, dos modos de viver e pensar made in USA. Aliás, nesta perspetiva, as suas inequívocas simpatias pelos republicanos estão longe de esgotar o perfil político de Eastwood..Na eleição presidencial de 2012, por exemplo, Eastwood foi o apoiante de Mitt Romney que, nuns célebres 12 minutos da Convenção Nacional Republicana, fez um discurso em que se expressou de modo contundente contra Barack Obama, representando-o através de uma cadeira vazia... Entre seriedade e sarcasmo, o episódio gerou muitas reações contrastantes. Em todo o caso, está longe de ser suficiente para definirmos Eastwood como um veículo automático da orientação política dos republicanos. Na eleição de 2016, a sua avaliação muito negativa de Hillary Clinton esteve longe de se traduzir na explicitação do seu voto, muito menos num apoio linear a Trump ("Consigo compreender de onde ele vem, mas nem sempre concordo com o que ele diz", disse numa entrevista de agosto de 2016 à revista Esquire)..Podemos caracterizar Correio de Droga como expressão de uma pessoalíssima visão do mundo, a colocar a par de outras grandes "tragédias americanas" como Bronco Billy (1980), Um Mundo Perfeito (1983), Mystic River (2003), A Troca (2008) ou American Sniper (2014). Em tempos de tanta mediocridade populista, Eastwood é um ator/produtor/realizador em que a suprema arte de envelhecer se confunde com o prazer de continuar a filmar o povo americano, expondo as convulsões de um tempo em que a mitologia do velho Oeste deixou de possuir o apelo redentor da idade de ouro de Hollywood..Na antestreia do filme, o mesmo repórter do Variety que interrogou a sua filha, perguntou a Eastwood o que o levou a voltar a assumir a dupla tarefa de interpretar e realizar. A resposta define o método de trabalho de um admirável contador de histórias: "Acontece que gostei do argumento - é sempre assim em qualquer filme."