Peter Chermayeff: "Ao tornar-se invisível o edifício está a fazer o seu papel"

O arquiteto americano projetou o Oceanário de Lisboa há mais de 20 anos. Chermayeff conversou com o DN sobre o meio privilegiado em que cresceu, marcado pelo Bauhaus, entre artistas, arquitetos e pensadores, sobre a sensação de mergulhar para ver um desfile de animais, o fascínio pelo oceano, o tempo que antecedeu a abertura do Oceanário de Lisboa, ou a lição que tirou ao ver um grupo de mulheres perante quadros de Botticelli em Florença
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Enquanto conversamos, os animais do Oceanário de Lisboa aproximam-se continuamente do lugar onde Peter Chermayeff fala, numa das janelas do grande aquário central. Foi ele quem projetou este edifício, que inaugurou há 20 anos na Expo 98.

Não é nada óbvio que um arquiteto tenha uma ligação assim tão profunda ao oceano, à água. Como é que ela acontece?

É uma viagem pessoal que em certa medida começou na minha infância, ao crescer em Cape Cod, no Massachusetts, perto do mar. Cresci exposto a tudo isto: peixes, pesca, brincar ali, velejar. E fui criado num mundo artístico, por um pai [Serge Chermayeff] arquiteto, professor, designer. Fui seu estudante em Harvard, o que foi só por si toda uma experiência. Ele era muito duro comigo, mas era duro com toda a gente.

Não era diferente consigo?

Talvez mais duro. Toda a gente vivia bem com isso, porque eu tinha de fazer o que eles tinham de fazer.

O seu irmão Ivan, autor de um painel de azulejos aqui no Oceanário, também estava em Harvard?

Não. Ele nunca foi aluno do meu pai. Ele seguiu design gráfico. Era um artista, gráfico, eu sempre fui mais um fazedor de coisas, então fui para arquitetura. Mas fomos educados com os mesmos valores, com a noção de que o trabalho artístico podia ser aplicado para resolver problemas, o nosso pai ensinou-nos isso. Quando estava a estudar não pensava apenas em edifícios, e quase me tornei num realizador de documentários. Tudo isso mudou com a oportunidade de fazer um aquário. Juntei-me a outras seis pessoas: entre eles o meu irmão e o seu parceiro Tom Geismar e outros quatro arquitetos. Eles eram talentosos, mais experientes do que eu - alguns 10 anos mais velhos - e juntamo-nos para fazer uma empresa [a Cambridge Seven Associates]. Fazer um aquário exigiria arquitetura, desenho, planeamento urbano, conteúdo da exposição, design gráfico, comunicação, estava tudo incluído.

Que idade tinha?

26 anos quando começámos a nossa empresa. Os meus colegas ensinaram-me todo o tipo de coisas, era como se estivesse a continuar a escola, mas encarregue de um aquário. Tinha de fazer com que as coisas acontecessem, e perceber como fazer. Fizemos muitos erros, mas também trouxemos ideias novas, e o nosso primeiro aquário em Boston teve muito sucesso. Tínhamos de o fazer de modo a que fosse mais do que o entretenimento de ver animais. Depois continuámos em Baltimore. E daí continuei. Nunca planeei ser um arquiteto de aquários.

Mas de algum modo era natural para si?

Sim. Eu adorava aquela área, preocupava-me com animais, sempre quis ajudar me a mim e aos outros a experienciar a natureza. Não era cientista, nunca estudei Biologia. Na realidade, continua a ser um embaraço para mim nunca ter estudado Biologia na faculdade.

E depois estudou?

Depois tive de aprender alguma coisa, sozinho e de outros.

Como?

Lendo e sobretudo rodeando-me de outras pessoas que sabiam coisas que eu não sabia. Eles eram os músicos da minha orquestra:

de iluminação, todas estas pessoas, que tocavam instrumentos sobre os quais eu não tinha qualquer ideia, eram os músicos da orquestra que eu tive o privilégio de dirigir.

Sente a necessidade de mergulhar, passear de barco?

Sim, sim. Nos últimos dois ou três anos não fui, mas antes mergulhei bastante.

Quão importantes são essas experiências para projetar um aquário?

Só quando se tem uma ideia do que é a vida na água se pode reproduzi-la num edifício. Ajudou-me muito. Nunca fui um mergulhador muito aventureiro, de ir muito fundo, mas fui a sítios fantásticos, como o Blue Corner, Palau. A corrente naquele rochedo com profundidade de dois mil metros faz a água subir, e como os nutrientes vinham debaixo, então nós ficamos ali, a 10/15 metros [debaixo de água], e aparece o mais fantástico desfile de animais: tubarões, raias, cardumes. Foi um desfile com a melhor coleção de animais que já vi.

Depois tenta recriar essa sensação?

Sim. [O aquário] Ajuda outras pessoas a terem essa sensação, e encontrarem o mistério disto: o animal que não esperávamos e que aparece de nenhures, uma grande manta que vem na nossa direção. É fascinante e intemporal.

Quando começou que referências tinha de arquitetos que fizessem aquários?

Isso não tinha. Tinha muitas referências de arquitetos que admirei e que me influenciaram, mas não diria que nenhum deles tenha sido responsável pelo facto de eu fazer aquários. As minhas influências começam pelo meu pai, mas também incluem pessoas como o Marcel Breuer, que conheci em criança, o Charles Eames, para mim um herói, um mentor; só o conheci em criança, mas conto-o entre as pessoas que mais influenciaram o meu desenvolvimento. Há muitos, há um sem número que podia nomear como herança. O Walter Gropius [fundador da Bauhaus] foi como um avô para mim. O Gropius foi o mentor do meu pai, foi quase como um segundo pai para ele. Ele disse-lhe para ir para Chicago quando László Moholy-Nagy, que foi o primeiro diretor do Instituto do Design, morreu. O meu pai fê-lo. Esteve lá cinco anos.

Toda a família mudou-se para Chicago?

Sim. O meu irmão também estudou lá, quando o meu pai saiu para ir para o MIT, Harvard.

Esperou que o seu pai saísse?

Não. Aconteceu assim. O meu irmão era parte do novo mundo da Bauhaus como eu era. Estava à nossa volta, era a comunidade que se fixou no país durante a guerra e depois da guerra.

Como era assistir a tudo isso enquanto criança?

Era entusiasmante. Eles eram pessoas brilhantes, fantásticas. O Bernard Rudofsky, uma mente extraordinária, o Saul Steinberg, um dos maiores artistas do século XX. O Costantino Nivola tornou-se num segundo pai para mim. Fui seu aluno em Harvard. Era um camponês vindo da Sardenha. Tinha uma mente brilhante e era um artista brilhante. Fez parte da minha vida. Trabalhei para ele num verão e teve uma grande influência na minha forma de pensar. Tive muita sorte por estar rodeado de pessoas extraordinárias toda a minha vida.

Já tinha alguma relação com Portugal antes de ser convidado para projetar o Oceanário?

Não. O António Mega Ferreira e o Cardoso e Cunha foram ter comigo a Boston. Encontrei-me com eles e chegámos a um acordo rapidamente e facilmente. Foi um encontro fantástico. Eles trouxeram-me para começar o trabalho, ver o sítio da Expo, perceber o planeamento que estava a ser feito. Começámos a trabalhar com algo que enquadrasse a história de Portugal e os oceanos. Cheguei rapidamente à conclusão de que devíamos fazer um aquário que celebrasse toda a terra como um só oceano, porque o Vasco da Gama foi do Atlântico ao Índico e era claro que tudo estava ligado. Escolhemos essa ideia. Teríamos um quadrado e em cada extremo representávamos um oceano. Deixámos fora o Ártico, porque eram quatro extremos, era um quadrado. Agora estou a trabalhar noutro projeto com o Ártico, no Canadá. Aqui descobrimos que podíamos ter animais comuns no tanque central

Foi a primeira vez que fez isso?

Sim.

Como é que a atual situação periclitante dos oceanos interage com o seu trabalho?

O propósito dos aquários é a capacidade de criar uma ligação emocional com as pessoas. Alguns dizem que se trata de aprender. Eu digo que começa pela emoção. Seja uma criança ou um adulto, se achar aquilo é misteriosamente comovente ou poderoso, emociona-se, lembra-se daquilo e regressa aqui. E talvez isto o faça ler um livro, ou ver um programa de televisão e ter uma vontade de compreender a vida além de si mesmo.

E então começa a preocupar-se?

Sim. As coisas mudam. E quando toda uma geração sente o impacto dessa experiência, então temos a possibilidade daquilo a que podemos chamar uma ética do ambiente. Se estes edifícios puderem encorajá-la, estão a marcar a diferença, a contribuir para o planeta. Porque senão cuidarmos do planeta estamos todos feitos. Não sou daqueles que acredita na arquitetura por si mesma, estou mais ligado ao seu impacto, ao conteúdo. Acho muito entusiasmante que o meu nicho especializado encontre um grande público ao longo dos anos.

Então não se importa que o seu edifício se torne invisível?

Não, ele está a fazer o seu trabalho ao tornar-se invisível. O meu irmão costumava dizer isso acerca do design gráfico: "No seu melhor nível, torna-se invisível." Tomamo-lo como parte do seu lugar, da vida, mas não nos está a bater na cabeça a dizer: "Olha para mim!"

O oceano continua fascinante?

Esse sentimento é intemporal. Sempre que venho aqui vejo coisas que me deixam muito contente por termos feito o Oceanário. O grande biólogo Edward Wilson, que foi uma grande figura na minha vida, falava de biofilia: dizia que a raça humana tem esse amor à vida, que somos atraídos a outras formas de vida, como as traças à luz do alpendre.

Consegue entender porquê?

Acho que tem a ver com as nossas raízes mais profundas. Sabe que me disseram que o animal mais procurado agora é a medusa? [As pessoas ] Comovem-se com a complexidade do seu mistério. Como é que algo vivo pode ser tão leve, gelatinoso, belo nos seus movimentos? Muitas pessoas ficam hipnotizadas, como se tivessem lido o seu primeiro poema. Quem vai a museus de arte tende a ser uma elite mais educada. Os aquários para mim sempre foram um lugar de mistura de todos os membros da raça humana: ricos, pobres, velhos, novos, com ou sem educação. Em Chattanooga [Aquário do Tennessee], por exemplo, como em todas as cidades, há um grande contraste entre ricos e pobres, e não se misturam muito, mas no aquário eles misturam-se a toda a hora. E eles também o sentem, e gostam, perdem essa consciência de divisão quando estão perante uma tartaruga.

Como foi começar a pôr as coisas em marcha, as espécies no aquário aqui no Oceanário de Lisboa?

Foi algo cheio de surpresas extraordinárias, porque ainda que tivéssemos desenvolvido todas as relações com simulações e modelos, fazendo a construção dos habitats, perguntávamo-nos: Vai funcionar? Como vai ser? É como fazer o cenário num teatro. Imaginámos no papel como seria, mas quando estamos lá com as luzes e os atores no palco pode parecer diferente do que era no ensaio, e então fazemos algumas mudanças. Foi um processo que durou alguns meses e houve ótimas surpresas. Os pinguins mergulhavam mais profundamente do que julgávamos. Extraordinário!

Uma coisa singular aqui no Oceanário é que não há muita informação escrita em torno dos aquários. Não nos desviamos muito.

Exatamente. Quando comecei pensei que tínhamos de dar muita informação e assumir esse papel educativo. Em Boston havia muito texto para ler, mas ao longo dos anos reduzimo-lo deliberadamente. Esta sala não tem muita informação. É um convite para uma experiência emotiva, para observar e perceber o que conseguimos ver. Isto começou quando estava nas [galerias] Uffizi, em Florença, e vi um grupo de mulheres entrar numa sala cheia de Botticelli, seis ou oito grandes pinturas. Elas tinham os guias e estavam a ler; dirigiam-se a cada pintura, olhavam, e passavam a outra. O tempo a olhar o quadro era talvez dois segundos, e dez minutos a olhar para o livro enquanto davam a volta à sala. Disse para mim: Há algo de muito errado aqui. Estas pessoas não estão a ver os quadros. Estão a verificar que viram a Vénus de que o livro fala.

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