Antigo juiz do Tribunal Constitucional, ex-ministro da Defesa, ex-comissário europeu da Justiça e Assuntos Internos, António Vitorino, de 62 anos, é desde outubro do ano passado diretor-geral da Organização Internacional das Migrações (OIM). De passagem por Lisboa para apresentar o livro Um Passeio pela Europa, do embaixador Fernando d"Oliveira Neves, falou ao DN sobre o uso do tema das migrações na campanha do Brexit, as divisões na União Europeia (UE) em relação a este dossiê, as divisões entre países sobre o Pacto Global da ONU para as Migrações e a crise na Venezuela..Está de passagem por Lisboa, para apresentar o livro do embaixador Fernando Neves, sobre a Europa. A UE atravessa uma crise - a do Brexit - que começou precisamente por causa do medo das migrações. Onde lhe parece que vai dar este processo do Brexit?.O debate sobre migrações no Brexit é um debate sobre as chinesas. O que era objeto de crítica pelos que defendiam a saída não era a migração de pessoas oriundas de países terceiros, mas a liberdade de circulação dos trabalhadores europeus, os polacos, os italianos, os portugueses, os espanhóis... há uma confusão de conceitos. Obviamente que as sondagens mostram que a questão da liberdade de circulação pesou muito no voto a favor do Brexit. Uma consequência disso é que uma das linhas vermelhas que a senhora Theresa May traçou é precisamente a liberdade de circulação, o que torna inviável qualquer acordo futuro que permita ao Reino Unido beneficiar das vantagens do mercado interno europeu, pois as quatro liberdades são indivisíveis. Creio que a relação futura do Reino Unido com a UE estará enfraquecida exatamente por não poder haver esse tipo de participação plena no mercado interno..O Brexit tem monopolizado as atenções. Acha que tem impedido a UE de avançar noutras questões, como a das migrações?.É evidente que o Brexit consome muitos esforços diplomáticos e de negociação, mas a agenda das migrações tem outros problemas que estão muito para além do Brexit. Se compararmos a situação atual com a de 2015, vemos que no continente europeu a migração caiu drasticamente, sobretudo no Mediterrâneo Ocidental, a situação no Mediterrâneo Oriental continua estabilizada desde o acordo entre a UE e a Turquia. Verificou-se nos últimos meses uma ligeira subida das chegadas ao continente europeu, sobretudo com destino a Espanha, de migrantes africanos subsarianos. Mas estamos a falar de números - cerca de 40 mil - que nada têm que ver com a crise de 2015..A UE continua a ter dificuldade em falar a uma só voz no tema das migrações. Nesta primeira cimeira UE-Liga Árabe, que decorre no Egito nos dias 24 e 25, tentou-se que a declaração final conjunta reconhecesse a validade do Pacto Global das Migrações da ONU. A Hungria vetou. Que credibilidade têm os europeus perante os árabes se não conseguem falar a uma só voz?.O Pacto Global das Migrações é um bom exemplo. Dez países da Europa não subscreveram o pacto da ONU adotado em Marraquexe em dezembro. Há aí uma divergência, que felizmente não tem impedido as instituições europeias de estarem muito presentes no diálogo com os países africanos, sobretudo com a União Africana, agora com a Liga Árabe, mesmo no domínio das migrações. Mas a verdade é que do ponto de vista político a revisão do sistema de asilo europeu parece estar congelada por uma contradição entre as posições dos Estados. Não há solução para os fluxos migratórios que não passe pela cooperação internacional. O valor acrescentado que a UE pode ter nesse diálogo internacional está debilitado pelas suas divisões internas..Mas alguns governantes, como o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, consideram que há soluções nacionais para o problema das migrações. Apesar de a Hungria ter falta de mão-de-obra e precisar de aumentar a taxa de natalidade, mantém uma política antimigração. É um exemplo de como o nacionalismo impede a aplicação de medidas pragmáticas? .Não comento a situação interna de nenhum Estado. O que digo é pela positiva. E pela positiva, se quisermos pôr em perspetiva, posso dizer que os países que estão em envelhecimento acelerado e que têm carências de mão-de-obra só as vão suplantar através de duas vias: pelo aumento da natalidade ou com recurso à imigração, com todas as complexidades que ela suscita. Não é um processo simples, fácil, nem para os migrantes que vêm para um novo modo de vida, nova língua, nova cultura, nem para as comunidades de acolhimento, onde há um conjunto vasto de ansiedades, medos, angústias, que muitas vezes não têm que ver com as migrações, mas em que os migrantes aparecem como elemento de polarização de doenças sociais mais vastas..Neste contexto, a política da chanceler alemã, Angela Merkel, poderia ser considerada mais pragmática... .A Alemanha, neste momento, depois do fluxo maciço de 2015, em relação ao qual fez um esforço de acolhimento e de integração, adotou uma lei sobre migração regular que tem, precisamente, em linha de conta as necessidades do mercado de trabalho..No seminário diplomático, em dezembro, no Museu do Oriente, alertou para o perigo dos populismos. Como vê a possibilidade de um partido como o Vox, que defende a expulsão de 52 mil migrantes, entrar no Parlamento de Espanha após as eleições antecipadas de 28 de abril?.Não comento política interna dos Estados. O que disse foi que as soluções populistas não correspondem à realidade e criam uma ilusão que, mais cedo ou mais tarde, a realidade se encarrega de desmentir. Não há soluções simplistas para questões complexas. E, nesse sentido, ideias como essa que referiu não têm exequibilidade prática. Criar ilusões para resolver problemas reais acaba sempre por ter um efeito boomerang sobre quem as cria..É de esperar que, nas próximas eleições europeias, em maio, o tema das migrações volte a ser usado? .Sim. Essa é uma das linhas de clivagem dentro do contexto europeu. Todas as forças populistas que pretendem ganhar representação no Parlamento Europeu utilizarão o tema das migrações. Mais importante do que isso é que aquelas forças políticas que defendem uma visão equilibrada, racional, realista, da regulação dos fluxos migratórios não sejam tímidas nem omissas na defesa das suas posições. Em nome de valores, mas também em nome da eficácia das políticas a aplicar..Portugal já indicou que, na próxima presidência da UE, em 2021, dará prioridade a África. Foi precisamente durante a anterior presidência portuguesa, em 2007, que se realizou, em Lisboa, a cimeira UE-África. O que mudou de lá para cá? .Desde a crise de 2015 foi estabelecido um diálogo bastante mais franco entre os dois lados do Mediterrâneo, mas também do conjunto do continente africano, sobre as migrações. Pessoas que morrem no Mediterrâneo são, em regra, vindas de África. E isso não pode ser indiferente aos governos dos países a que essas pessoas pertencem. Houve um conjunto de decisões, desde o acordo de La Valetta, passando pela declaração de Abidjan, que se traduziram numa abordagem conjunta entre a UE e a União Africana e os países africanos. Terá todo o sentido que a próxima cimeira UE-África dê relevo às migrações, embora a maioria das migrações em África seja intra-africanas. Não são migrações sul-norte..Muammar al-Kadhafi, cuja vinda a Lisboa foi na altura um problema, caiu entretanto. Depois disso a situação na Líbia e das migrações piorou... .A evolução na Líbia, do ponto de vista político, está longe de estabilizar, assim como de haver um Estado capaz de gerir o país nos vários domínios, entre os quais o das migrações. Uma parte dos migrantes que chegam por via marítima pelo Mediterrâneo Central são oriundos da Líbia. Não exclusivamente, mas vêm através da Líbia e embarcam em jornadas perigosíssimas - que no ano passado fizeram três mil mortos..Disse que é preciso uma estratégia integrada, que só assim se pode responder às migrações. Que ideias estão a ser trabalhadas? Poderia haver, por exemplo, bolsas de emprego dentro dos próprios países africanos? Que países poderiam ser esses?.Há um projeto de liberdade de circulação de pessoas na União Africana. Foi aprovado e está agora em processo de ratificação pelos Estados membros. Há uma dinâmica, que ainda é embrionária, mas que revela que há uma preocupação na procura de soluções conjuntas. Há exemplos de cooperação entre a União Europeia e a União Africana, no sentido de a Europa apoiar projetos desses países africanos para garantir que as pessoas têm oportunidades de vida, no futuro, nos seus países ou noutros Estados da região..Olhando para o que acontece - ou pode ainda vir a acontecer - na Venezuela, teme uma crise migratória maior?.Não vou fazer previsões. A OIM está presente na situação na Venezuela, apoiando os venezuelanos que se deslocaram para os países limítrofes, como Colômbia, Peru, Equador, Argentina, Chile... Estamos a falar de um grupo de dois milhões de pessoas, com necessidades de assistência humanitária. Temos, com o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR), uma plataforma conjunta para os deslocados da Venezuela para garantir a assistência imediata a essas pessoas. Elas chegam, muitas vezes, em condições difíceis, sobretudo nestes últimos meses. Temos registado chegada de pessoas muito pobres, mulheres e crianças, sobretudo, que necessitam de uma intervenção imediata. Gostaria de sublinhar que os países limítrofes têm sido de uma grande abertura e de uma grande generosidade em relação às pessoas que saem da Venezuela..Isso inclui o Brasil?.Inclui o Brasil, no estado de Roraima..Disse que não quer elaborar sobre isso, mas a eclosão de uma crise migratória maior na Venezuela, somada às caravanas de migrantes e à política do muro do presidente dos EUA, Donald Trump, que impacto pode ter no continente americano?.Em relação à situação na Venezuela, as agências da ONU estão a trabalhar em planos de contingência para todos os cenários. Portanto, neste momento, não vou estar a fazer qualquer prognóstico. Juntou as duas coisas. Mas enquanto no caso da Venezuela estamos a falar de dois milhões de pessoas, no caso das caravanas de migrantes, o máximo que se atingiu, mesmo no pico, foram 15 mil pessoas. A dimensão das questões é distinta. Obviamente que também estamos presentes no México para ajudar as pessoas que vão nessas caravanas, sobretudo junto à fronteira, e que vivem também em situação humanitária difícil..Efetivamente, no terreno, eu estive entre San Diego e Tijuana em 2017, é difícil perceber porque é tão urgente um muro, quando na realidade já existem dois. Porque é que acha que Trump insiste na necessidade de um muro com o México?.Não vou comentar políticas internas. O que é preciso é encontrar formas de cooperação e dar prioridade às causas profundas que levam as pessoas a migrar. No caso da América Central, é a falta de oportunidades de emprego, mas também a insegurança, a proliferação de grupos criminosos, a necessidade de reforçar as regras do Estado de direito. Muita gente foge da pobreza, mas muita gente foge também da insegurança pública, da ação de gangues de traficantes de drogas, é aí que estão as respostas estruturais a fenómenos como as caravanas..Além das causas sociais e dos conflitos como motivos para as deslocações de populações, no futuro uma das maiores causas das migrações serão as alterações climáticas, os problemas relacionados com a água, disputas, guerras da água. Acha que a maior parte da população, por exemplo as pessoas em Portugal, tem noção disso?.As alterações climáticas vão fazer-se sentir em todo o planeta, mas de forma diferente. Quando falamos de migrações e alterações climáticas, é completamente diferente falar da seca, da falta de água e do esgotamento de terrenos agrícolas na África Central, que leva uma massa de população a deslocar-se, ou para zonas urbanas ou para outros países; ou falar da situação do Pacífico ou de algumas ilhas nas Caraíbas, onde é o aquecimento global e a subida do nível da água do mar que reduz o território onde as pessoas podem viver e as leva a deslocar-se. Ou, se quisermos ainda, noutros sítios, as cheias, as inundações, os ciclones, os tufões, provocam, obviamente, movimentos populacionais. Não há um modelo para todos. Cada caso tem de ser analisado de acordo com a sua especificidade. Agora, há algo que os reúne. E isso é que há cada vez mais pessoas que têm de se deslocar em virtude das alterações climáticas. Seja por causa de catástrofes naturais, algumas de responsabilidade humana, seja por causa da lenta, mas progressiva, degradação das condições ambientais e climatéricas. Nesse sentido, hoje, à escala global, existem cerca de 40 milhões de pessoas internamente deslocadas, e uma parte muito significativa dessas pessoas estão deslocadas dos seus sítios de origem por causa de razões ligadas às alterações climáticas. O grande desafio é criar condições para que as pessoas deslocadas possam fixar-se num novo território e serem aceites nesse mesmo território.