As vendas de vinho do Porto renderam 122 370 euros no primeiro semestre do ano, 26,2 milhões de garrafas, o que representou menos 14% na faturação comparativamente com 2019. António Saraiva, que é também o presidente do conselho de administração da Rozès, teme que o pior ainda esteja para vir. Mas acredita que, quando houver uma vacina contra a SARS-CoV-2, Portugal será um dos países que vão recuperar mais depressa..De que forma a pandemia está a afetar o negócio do vinho do Porto? No primeiro semestre do ano, tivemos uma quebra de 12% em volume [quantidade de garrafas] e de 14% em valor [faturação]. Chegaram a falar em quebras de 25%. Poderemos chegar ao final do ano com quebras globais de 25%, ninguém sabe o que vai acontecer. O último quadrimestre [setembro, outubro e dezembro] representa 60% das vendas e, como se fala numa segunda vaga da covid-19, pensamos que a situação se irá agravar. O vinho não é um produto de primeira necessidade, o vinho do Porto a mesma coisa, e há muitas pessoas com dificuldades, no desemprego, não só em Portugal como em outros países.. Qual é a percentagem de vinho do Porto que fica em Portugal? O consumo no país tem vindo a crescer e, no ano passado, pela primeira vez, Portugal foi o primeiro mercado em valor e o segundo em volume. Mas porquê? Por causa do turismo, mas como o turismo desapareceu, o comércio em Portugal está a cair 36% em volume e 41%% em valor. E era um mercado que estava a compensar as perdas internacionais, que já se verificavam. Nas exportações, qual é o mercado principal? O primeiro mercado é França - a Europa representa cerca de 70% das vendas -, que continua a comprar mas com quebras de 16% em volume e 17% em valor. Comprou no primeiro semestre 28,6 milhões de euros em garrafas de vinho do Porto. A Bélgica e a Holanda, segundo e terceiro mercados, respetivamente (13,5 milhões de euros), compraram menos 3% em valor. Alemanha, Luxemburgo, Bélgica, República Checa, Noruega e Rússia foram os únicos que compraram mais, sobretudo a Noruega (565 mil euros, + 17,3% do que em 2019) e a Rússia (1,5 milhões de euros, + 24%). O vinho do Douro está com as mesmas quebras? Sensivelmente. O vinho do Douro vendeu 65 milhões de euros, menos 15% do que em 2019. Em 2019, a Região Demarcada do Douro, entre o vinho do Porto e o vinho do Douro, faturou 560 milhões de euros, foi o melhor ano de sempre. Este ano está a ser o pior de que há memória. A nossa região tem a especificidade de ter dois vinhos com a denominação de origem protegida (DOP), o Porto e o Douro. No vinho do Douro, o primeiro mercado era o português..Falou na maior crise de sempre, mesmo tendo em conta a de 2008-2011? A crise de 2011 passou ao lado de uma série de países e o nosso setor não sofreu especialmente. Houve quebras, mas, graças ao turismo em Portugal, voltou a vender-se bem e a crescer em preço médio. Começou-se a vender vinhos de categorias melhores, e, atualmente, não só se estão a vender menos garrafas como o vinho que se vende é de categorias inferiores. As pessoas estão com menos dinheiro e compram vinhos mais baratos. Vinhos com 10, 20 anos, os vintage, têm uma maior quebra. O pior ainda está para vir e não falo da segunda vaga da covid-19, mas das empresas (não no nosso setor) que vão fechar e despedir pessoas nos dois meses após lay-off..A associação que preside e outras do setor estão a ponderar medidas especiais? Não há medidas especiais. A medida especial seria lançar campanhas de promoção, mas vamos para onde? A covid-19 está em todo o lado. Numa crise como a de 2011, pudemos dedicar-nos a outro mercados, nesta não o podemos fazer. Não podemos viajar, não há feiras internacionais, os estrangeiros também não podem vir. Ninguém consegue traçar uma estratégia, esse é o grande problema.. Qual tem sido a vossa principal preocupação? Nós, empresas do setor que se juntaram na AEVP, pensámos em fazer algo que pudesse dar mais dinheiro à lavoura. Se fôssemos produzir só o vinho do Porto que poderíamos vender, a quebra seria enorme. Fizemos um acordo para produzir dez mil pipas de vinho que vão ficar bloqueadas durante pelo menos três anos, o que permite ao viticultor receber dinheiro neste ano. Chama-se a isso Reserva Qualitativa e é financiada parcialmente pelo saldo de gerência do Instituto dos Vinhos Douro e Porto [IVDP]. É um instituto público, tem saldos excedentários acumulados ao longo dos anos, o que permitiu que a AEVP, com a produção (a Casa do Douro e as várias associações), conseguisse cinco milhões de euros do Estado, a que juntamos outros cinco milhões das empresas. Ainda assim, o volume de produção aprovado para 2020 é de menos 5% em relação a 2019. Baixou para 102 mil pipas, 92 mil vão ser postas à venda e dez mil ficam de reserva. As empresas comprometem-se a comprar as 92 mil, que é o que precisam, as outras dez mil também nos comprometemos a comprar, mas ficam bloqueadas, senão vai deturpar o mercado. Essas dez mil pipas vão ficar sob gestão do IVDP, para que haja alguma estabilidade na região. Quantos viticultores há de vinho do Porto? O Douro tem 23 mil viticultores e todos fazem vinho do Porto e DOP Douro. A produtividade do Douro são 250 mil pipas, cada pipa são 550 litros. É o Conselho Interprofissional que decide a quantidade que fazemos de vinho do Porto. A diferença entre essa quantidade e o que a região produz é o DOP Douro. O vinho do Porto é contingentado para só se produzir o que o comércio precisa. Fazer mais vinho do Porto do que as empresas precisam, não comprariam ou comprariam a preço de saldo, e isso é que seria uma asneira. Somos a única região na Europa - diria quase no mundo - que é certificada desde a plantação da vinha até à garrafa da prateleira do supermercado por um instituto público. A marca Porto e a marca Douro não são propriedade das empresas nem da região, são propriedade nacional, e o vinho do Porto é o mais conhecido.. É uma vantagem? É uma vantagem. Por um lado, não somos donos da verdade. Um vinho vintage, por exemplo, tem de ser comprovado pelo IVDP. O grande problema do instituto público é que temos a taxa mais elevada de certificação - além de pagarmos os nossos impostos - e esse dinheiro vai para o Orçamento do Estado e sofre cativações. Estamos a pagar e o dinheiro vai ficar retido, o que é uma injustiça profunda. E para quem trata da vinha? O produtor tem a garantia de que recebe o dinheiro das suas uvas de Porto até 15 de janeiro, mas havia muitas empresas que só pagavam em maio, e em junho as uvas de DOP Douro. Neste ano, também o pagamento do DOP Douro será feito através do IVDP e nos mesmos moldes. O produtor tem a sua propriedade, mas a maior parte foi perdendo a capacidade de vinificar, de fazer o seu próprio vinho, e vende as uvas. As empresas depositam o dinheiro no IVDP, que o transfere para o viticultor. Assim, há a certeza de que o viticultor recebe, independentemente de ser muito grande ou muito pequeno, não há aqui o poder de uma grande empresa versus um pequeno viticultor.. É português e dirige uma empresa do vinho do Porto francesa, a Rozès... Os donos são franceses, é uma empresa de champanhe. Mas empresas 100% portuguesas são poucas, a Sogrape, Poças Júnior, a Andresen e a Real Companhia Velha. Como é que foi parar à Rozès?.Esta empresa foi fundada em 1855 por Ostende Rozès, que vivia em Bordéus, onde também me formei. Acabei o antigo 7.º ano do liceu em 1974, fecharam as universidades, abriu o serviço cívico, ninguém sabia bem o que ia acontecer. E o meu pai, que era de Pinhão, viticultor e ia muitas vezes a França, propôs-me que fosse estudar para Bordéus, onde me formei em Enologia. Entrei para a Rozès em 1999, quando foi comprada por Paul Vranken, mas já trabalhava com ele há 11 anos. Eu estava numa empresa de vinho do Porto em Vila Nova de Gaia quando ele visitou o Douro, adorou, e decidiu comprar uma quinta em dezembro de 1986. Em 1987 reconstruiu a quinta, conheci-o, simpatizámos um com o outros e fez-me um desafio: "Se decidir investir, acreditas que o Douro tem futuro." Eu disse que sim e comecei a trabalhar com ele a 1 de janeiro de 1988. Fundámos a primeira empresa no Douro, com a marca São Pedro das Águias, e fomos os primeiros a pôr no rótulo de uma garrafa do vinho do Porto que tinha sido engarrafada no Douro. Até aí, o vinho era engarrafado em Gaia. Faltava-nos uma marca - o difícil não é fazer um bom vinho do Porto, é vendê-lo - e o Vranken comprou em 1999 a marca Rozès, uma empresa de champanhe, a Moët & Chandon. Qual é o principal destino da vossa produção?.Temos vindo a afirmar a marca em Portugal, estamos ligados à hotelaria e restauração, mas ainda é pouco conhecida. Exportamos 85% do vinho que fazemos.. É mais rentável fazer vinho do Porto?.Não sei se é. É uma indústria de capital muito intensivo, só podemos vender um terço da produção, o que obriga a uma grande mobilização de capital. Um vinho do Porto de 20 anos tem de estar nas pipas pelo menos 20 anos e perde 2% a 3% da sua quantidade ao ano. O DOP Douro estava a crescer muito graças ao turismo e tem um retorno do capital mais rápido. Em janeiro, estamos a vender o vinho branco da vindima anterior, e vinho tinto, dois a três anos depois. O ideal é ter os dois vinhos, todas as empresas o fazem.