António Manuel Ribeiro: "Faltam caras e cores na rua nobre de Almada velha"

Líder dos UHF sente o "festim das energias adormecido" na cidade onde cada um está preso "ao seu refúgio sob o ferrolho do silêncio"
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Um dia, há um ror de tempo, escrevinhei este verso: "Andei pelos bares da cidade à procura de conforto." A canção recebeu o título Quero Estoirar. E Uma Oração e foi editada em 1988. Mas o poeta é um fingidor, ungiu-nos o caminhante que vai à frente.

Naquela noite das fotos, palmilhei o alcatrão húmido da chuva, senti o festim das energias adormecido, preso cada um ao seu refúgio sob o ferrolho do silêncio - nem um cão cinematograficamente a uivar, ou o grito "viziiiinhaaa", nada, nem um riso de criança - apenas o negrume e as carroçarias escorrendo lágrimas junto aos passeios. As persianas fechadas, lojas abandonadas, sem velhos à porta pendurados na última beata com os penáltis negados à conversa.

Silêncio fustigado por mais silêncio; oiço o único raspar das minhas solas. Os candeeiros curvam-se à nossa passagem; sigo o homem da lente na faixa de rodagem.

Ausência de caras e cores, copos nas mãos, movimento na rua nobre de Almada velha - o país vai precisar de muita coragem para soprar o medo que a reclusão arrumou. O cérebro, mandrião, encolhe-se e escolhe o normal, porra!, nunca esse novo normal pindérico que nos oferecem nas notícias do óbvio repetido por mais doses de óbvio.
A cidade tem os seus roncos escondidos - agora uns pingos de água. Um carro da polícia chega com luzes azuladas, sobe o passeio e o homem da farda entra na farmácia. Vem um carro da Baixa da cidade, dois, nunca três, e o metro desliza sobre os carris no único uivo que lacera a noite.

Poucas luzes se debruçam dos andares, claridades esbatidas por cortinas, calafetadas pelo grude do medo que atravessa a solidão. A janela da TV imobiliza o olhar, há uma guerra declarada, hospitais inundados de baixas e heróis vestidos de preservativos para cuidar dos feridos. Há contágio, o contágio do medo, a partida do vazio. Um sino ecoa sem cânticos.

Sobre a minha cidade não se houve o roncar dos aviões nem o silvo dos mísseis. Não há barricadas nem o matraquear das armas ligeiras e explosões de morteiros. Na minha cidade, encostada às águas do Tejo-serpente, há um filme do cinema mudo que afastou o riso e a alegria para hora incerta.

Não uso a lança da esperança, mas tenho confiança de que os homens que um dia ergueram as esquinas da cidade, os nomes que ficaram presos por mérito em placas toponímicas soltarão um grito de revolta e a rebelião da vida voltará para se surpreender com as pequenas coisas, os movimentos e os ruídos, o queixume da vizinhança em dia de festa, um gato esganiçado a fugir de um balde e o ruído dos escapes a gritarem que a vida vai de corrida.

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