Anti-herói americano confronta-se com fantasmas familiares
Assim vai o mundo (cinematográfico, e não só). Lamento de uma América em Ruínas é um consistente e muito interessante filme com todas as componentes típicas de um objeto pensado para uma sala de cinema, a começar pela magnífica utilização do formato "scope" das imagens... mas só o poderemos ver numa plataforma de streaming.
Esta semana é mesmo o principal lançamento da Netflix, além do mais reforçando as suas ambições (totalmente legítimas, não é isso que está em causa) de uma renovada e forte presença na corrida aos próximos Óscares. E não há dúvida que pelo menos duas atrizes do elenco - Glenn Close e Amy Adams (interpretando mãe e filha) - são, desde já, hipóteses a considerar para nomeações nas categorias de representação (secundária e principal, respetivamente).
Enfim, não nos queixemos. Importa lidar com o atribulado presente da vida industrial e comercial do cinema sem atrair a proliferação de normas mais ou menos redutoras, tendencialmente moralistas: Lamento de uma América em Ruínas apresenta-se como um clássico melodrama familiar, fiel à mais nobre herança de Hollywood, por certo reforçado pela sua inspiração verídica.
Esta é a história de J. D. Vance cuja autobiografia, Hillbilly Elegy - também o título original do filme, identificando as raízes rurais do seu universo familiar -, foi, em 2016, um fenómeno de popularidade dos EUA (a tradução portuguesa, com chancela Dom Quixote, intitula-se, precisamente, Lamento de uma América em Ruínas). A sua personagem possui as componentes sociais e simbólicas de um emblemático anti-herói: ele é alguém que vive entre as convulsões do seu território original, assombrado pela dependência de drogas da mãe, e a ambição de estudar advocacia na Universidade de Yale.
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Realizado por Ron Howard, cineasta de vários títulos sobre memórias e fantasmas "made in USA" - incluindo Frost/Nixon (2008), sobre o célebre conjunto de entrevistas de Richard Nixon, já depois da demissão do cargo de presidente, a David Frost -, Lamento de uma América em Ruínas opta por um controlado ziguezague presente/passado. Assim, por um lado, Vance está a pouco mais de 24 horas de uma entrevista decisiva para a sua entrada em Yale; por outro lado, uma recaída da mãe leva-o a regressar às origens, tentando resolver um drama cujas raízes se perdem nas turbulências afectivas, sexuais e financeiras da família.
Sendo um profissional também com uma longa experiência de representação - lembremos a sua participação, ainda criança, na comédia As Noivas do Papá (1963), de Vincente Minnelli -, Howard distingue-se por uma elaborada direção de atores, fiel a um princípio muito clássico: nenhuma personagem, por mais breve que seja a sua presença no ecrã, deve ser secundarizada, muito menos desprezada. Daí um especial sublinhado para a figura do próprio Vance, interpretado por Gabriel Basso (adulto) e Owen Asztalos (nas cenas de infância): as suas performances são a encarnação exemplar de uma ideia de destino e da luta para resistir ao seu assombramento.
* * * Bom