Para quem gosta de viagens e comida - e vale a pena acrescentar: humor ácido e inteligente - o dia 8 de junho de 2018 ficará para sempre na memória. Uma memória triste e incrédula. Nesse dia, em França, aquele que durante anos partilhou não só o mundo menos visível da restauração como, e à sua maneira, a cultura de países díspares e longínquos, punha término à sua vida e enforcava-se..Foi assim que Anthony Bourdain foi encontrado pelo chef, e amigo de longa data, Eric Ripert, no seu quarto num hotel perto de Estrasburgo, em França, quando gravavam juntos mais um episódio da série de televisão Parts Unknown para a CNN. A história é conhecida e já foi contada vezes sem conta. Pela brutalidade, pela incredulidade que todos os que o seguiam sentiram nesse dia. Depois do choque a pergunta que começou a surgir foi outra: afinal quem era Anthony Bourdain? O chef aventureiro? O escritor de humor ácido? Uma espécie de James Bond, versão punk?.Nascido em Nova Iorque a 25 de junho de 1956, mas criado em Nova Jérsia, depois de uma adolescência conturbada em que sofreu de dependência de heroína e cocaína, Bourdain formou-se no Culinary Institute of America, em 1978, e foi passando por várias cozinhas até se estabelecer como chef principal no restaurante nova-iorquino Les Halles. Era um perfeito desconhecido com 28 anos de carreira na cozinha até à publicação do bestseller Kitchen Confidencial (2000) - Cozinha Confidencial, Aventuras no Submundo da Restauração (Ed. Livros d"Hoje) em Portugal - o dar a conhecer ao mundo. Contudo, não foi este o seu primeiro livro. Antes, e pagando a edição do seu próprio bolso, publicou em 1995 o thriller culinário Bone in a Throat e anos mais tarde Gone Bamboo, ambos sem sucesso. Mas depois de Cozinha Confidencial tudo mudou na sua vida. Surgiram convites para mais livros e para apresentar um programa de televisão de viagens e gastronomia..Hoje, mais de três anos depois da sua morte, Bourdain continua muito presente. Nos Estados Unidos têm sido publicados livros sobre si quase em catadupa. Como é o caso de In the Weeds: Around the World and Behind the Scenes with Anthony Bourdain, escrito por Tom Vitale, produtor e realizador de alguns dos programas de Bourdain publicado este mês; ou Bourdain: The Definitive Oral Biography, lançado em setembro por Laurie Woolever, escritora, editora e assistente de longa data de Bourdain que antes, ainda este ano, já havia lançado Viagens Pelo Mundo - Um Guia Irreverente (2021), publicado em Portugal pela Casa de Letras, um guia de viagens que Bourdain queria fazer mas que a sua morte não permitiu. Contudo, Laurie Woolever avançou para a publicação. Na introdução do livro a escritora conta que "numa tarde de primavera de 2018, sentei-me em frente ao Tony [Bourdain] à mesa da sua sala de jantar, no seu apartamento num arranha-céu em Nova Iorque", tendo esse sido o único momento em que falaram sobre o livro. Depois da morte de Bourdain, Woolever perguntou-se: "Talvez o mundo precise de outro guia de viagens, cheio de humor ácido do Tony, das suas observações refletidas e de algumas revelações dissimuladas dos contornos misteriosos do seu coração maltratado"..Nas mais de 535 páginas damos a volta ao mundo com alguns apontamentos e citações que Bourdain fez, em privado ou em alguns dos programas de televisão que foi gravando em mais de 15 anos (há dois breves capítulos sobre as visitas a Lisboa e Porto ). Pelas páginas encontram-se também pequenas histórias e testemunhos de amigos de Bourdain que a escritora reuniu. É um guia de viagens diferente e que talvez funcione mais como uma memória do que Bourdain foi sentido em cada local por onde passou..Na edição portuguesa o prefácio é da autoria do chef Ljubomir Stanisic que conviveu com Bourdain quando este veio a Lisboa gravar um episódio sobre a cidade para a série Parts Unknown, em 2012, em plena crise económica. Ao Diário de Notícias, Stanisic recorda esses momentos. "No caso do Bourdain, honestamente, conhecê-lo só serviu para aumentar ainda mais a minha admiração por ele. Foi um verdadeiro gentleman, educado, simpático, disponível, mas também reservado, com uma curiosidade gigantesca e uma cultura enorme. Já na altura era conhecido no mundo inteiro e não senti a mínima presunção. Mesmo no jogo de chinquilho, antes de irmos comer ao Bistro [100 Maneiras], alinhou em tudo, sem problemas, na maior. Era mesmo o tipo de pessoa que conseguia estar bem em qualquer contexto, com qualquer tipo de pessoa. Mas, tenho de admitir, achei também que havia um certo cansaço nele... imaginei que fossem as viagens constantes, a correria permanente, algum desencanto ao fim daqueles anos todos a percorrer o mundo..."..E não foi um encontro só para as filmagens. O chef Ljubomir Stanisic conta que conversaram muito. "Falámos dos gostos e desgostos a respeito de comida, dos lugares que o encantavam mais, de Lisboa e da minha perspetiva sobre Portugal... Depois das filmagens, ainda nos encontrámos numa pequena festa no Terraço do Hotel do Bairro Alto para umas bebidas, onde ele reuniu algumas das pessoas que fariam parte deste programa sobre Lisboa. Foi um privilégio passar este tempo com ele, mas, há que admitir, a excitação era unilateral". Entre Bordain e Stanisic há agora uma coincidência, quase macabra: Bourdain morreu no exato dia em que o chef do 100 Maneiras, com uma estrela Michelin, completava 40 anos. "We"ll always have June 8th..." [Teremos sempre o dia 8 de julho...], escreveu no prefácio do livro. "Sem menosprezar a carreira do Bourdain na cozinha, acho que foi mesmo como comunicador que se tornou único. Há claramente um antes de Bourdain e um depois de Bourdain na forma como o público entende e se relaciona com a gastronomia, como vê os profissionais de cozinha, mesmo a forma como se valoriza a cozinha como cultura"..Recorde-se que Bourdain filmou quatro vezes em Portugal. Depois de ter estado nos Açores, em 2009, em 2012 mostrou uma Lisboa a tentar recuperar da crise económica onde se deu o tal encontro com Ljubomir Stanisic, mas onde também comeu marisco com José Avillez e Sá Pessoa, ouviu fado cantado por Carminho, conversou com o escritor Lobo Antunes, entre outros momentos. No Porto filmou por duas vezes, a primeira em 2002 e a última em 2017, para Parts Unknown. Neste episódio reencontra-se com o português Fernando Meirelles, antigo sócio do restaurante Les Halles, numa matança do porco. O resultado final não foi, no entanto, consensual entre os especialistas da comida. Fernando Melo, crítico de comida e vinhos, que escreveu na altura um texto para a revista Evasões, é perentório: "Falhou quase tudo! Sobretudo o aspeto de não se ter informado devidamente. A produção do programa falhou muito. Nem as tripas à moda do Porto foram convenientemente explicadas e teria sido fantástico. Tinha adorado que ele explicasse que as quatro partes do estômago do bovino têm todas de entrar na forma clássica de fazer as tripas", explica o crítico, sublinhando que a sua perspetiva é necessariamente diferente da de um leigo.."Talvez seja mais sensível a pormenores técnicos a que ninguém liga. É preciso não confundir opinião pessoal com crítica. Jay Rayner fez um trabalho que considero genial, no livro The man who ate the World. Percorreu o mundo à procura da refeição perfeita, com um vocabulário riquíssimo, informado e divertido. Isso sim, é uma boa base. Andar pelo mundo de liana em liana, como fez Bourdain, não me convence mesmo". Contudo, Fernando Melo ressalva: "A inteligência dele quanto ao momento e uma certa sensibilidade para o popular e para as interrogações da maioria, fazem dele um belíssimo comunicador"..Voltando a Bourdain, chega agora a Portugal, trazido pelo Doc Lisboa o documentário Roadrunner - A Movie About Anthony Bourdain (2021), realizado por Morgan Deville. Estreia em Lisboa no dia 28 de outubro, no São Jorge, com uma segunda exibição no dia 31..É um documentário onde ao longo de duas horas vemos não só filmagens da vida privada de Bourdain, precisamente nos momentos em que começou a ter sucesso com os seus livros, como alguns bastidores dos muitos episódios dos programas de TV. Há também depoimentos sentidos de amigos, do irmão (Christopher Bourdain) colegas (chefs) - como Eric Ripert e David Chang -, da ex-mulher, de produtores e ainda parte do staff que conviveu muito de perto com Bourdain ao longo dos últimos anos. A ideia não é esmiuçar a morte e a forma como morreu o chef mas sim tentar perceber quem era Anthony Bourdain e o que o movia..Apresentado cronologicamente, segue Bourdain desde o êxito traduzido pelo livro Cozinha Confidencial até se tornar uma estrela que mal podia andar pelas ruas de Nova Iorque sem ser abordado constantemente. No documentário é contada a forma como no início dos programas de televisão Anthony Bourdain não estava à vontade, pela sua timidez ou por não dominar o meio, e como, com o tempo, foi mudando como pessoa e tornando-se no comunicador que o levou ao estrelato e a ganhar prémios - Parts Unknown, criado para a CNN, ganhou vários prémios, entre os quais 12 Primetime Emmy Awards. Bourdain afirma mesmo que quando começou a viajar pelo mundo e a fazer televisão "pensava que já tinha vivido todas as minhas grandes aventuras"..O documentário aborda quase tudo, desde os tempos em que era viciado em heroína até quando se tornou pai, mostrando-o carinhoso e dedicado à filha. E também quando anos mais tarde decidiu divorciar-se e continuar a sua jornada de "lobo solitário" pelo mundo. Os amigos e colegas falam ainda da forma aditiva como Bourdain se envolvia com alguns aspetos da sua vida. Como na fase em que fez jujitsu tendo mesmo competido e vencido alguns troféus dessa arte marcial. Contudo, desapaixonava-se facilmente. Na segunda parte do documentário, mais emotiva - sobretudo porque o fim é bem conhecido e triste -, tenta-se perceber o que levou um homem como Bourdain a enforcar-se num quarto de hotel..Às tantas o documentário recupera uma conversa com Iggy Pop. Anthony Bourdain pergunta ao músico o que mais o motiva na vida: "ser amado". Talvez também fosse assim que Bourdain responderia se fosse vivo. É com um olhar sobre o seu coração, maltratado, e o amor que sentiu pela atriz italiana Asia Argento, que o documentário termina. Mostra como se apaixonou (ou viciou) na relação e como mudou com Asia - chegando mesmo a dispensar um diretor de fotografia com quem trabalhava há mais de 12 anos por influência dela. Bourdain tomou para si os dramas da atriz, que ao ter publicamente admitido ter sido ter sido violada pelo produtor Harvey Weinstein se tornou umas das vozes líderes do movimento #Metoo..Tudo parecia correr da melhor maneira entre os dois, até que a equipa de filmagens começou a sentir Bourdain cada vez mais isolado, mais triste, com um lado mais negro a vir ao de cima. Um olhar mais atento para as últimas temporadas já descobre no rosto de Bourdain o tal cansaço e desencanto. Seria das viagens? Seria do desgosto de amor que Asia, entretanto, o fez sentir? Seria dele próprio? A resposta ficará sempre por responder, por muitos livros e documentários que sejam feitos. Roadrunner é um documentário interessante para quem quer saber mais sobre Bourdain e como era verdadeiramente para lá das filmagens. Mas não responde à pergunta mais importante: o que fazia feliz Anthony Bourdain?.filipe.gil@dn.pt