"Antes da política vem a defesa da minha terra"

O centro de voluntários criado por Serhyi Prytula em Kiev tem recebido muita ajuda nacional e internacional, de países europeus como Polónia, Alemanha e Itália.
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Quem o afirma é Serhyi Prytula, político e apresentador de TV conhecido na Ucrânia. Em 2014, com os acontecimentos que levaram à revolução EuroMaidan decidiu partir no seu carro para sul para ajudar as forças armadas ucranianas. Encheu o carro do que pôde, sacos-cama, medicamentos, comida, aparelhos de visão noturna e, claro, cigarros, pois ali a espera podia ser longa. Apesar de serem tempos turbulentos, junto à fronteira com a Crimeia, ocupada pelos russos nessa altura, era maior a tensão e escassez destes bens que a violência armada. Bem diferente da guerra que rebentava no leste da Ucrânia na região do Donbass e que levou depois à criação das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk anos mais tarde, e antes do início da guerra reconhecidas pela Rússia como independentes. Oitos anos passaram e Serhyi continuou com a sua ação de voluntariado a angariar fundos, equipamento, e a receber doações, que depois entrega aos militares. E é o que este centro faz agora em Kiev.

"A Ucrânia é a minha terra e agora a guerra é global. Antes no sul via a placa a dizer território ocupado a 18 km na Crimeia, agora são a 18 km de Kiev. Por isso é aqui que temos que estar". Diz também que quando os ucranianos pedem para fechar os céus é apenas para defender "as nossas mulheres e crianças, que estão a morrer nas mãos do inimigo", não é para alvos militares, por isso Serhyi acha que é possível. Maria Pysarenko, a assessora de imprensa do centro, deixa escapar que o movimento de voluntários tinha intenções políticas de formar um partido, "na segunda-feira antes da guerra tínhamos marcado uma reunião para tratar das formalidades legais mas no dia 24 de fevereiro veio a invasão russa e a guerra começou. Estas instalações parecem um escritório civil porque na verdade eram a futura sede do partido, que não chegou a avançar". Com a guerra tudo isso ficou congelado, e tornou-se secundário, conclui.

"O que interessa é ajudar a parar esta guerra e defender a minha terra que é a Ucrânia", garante Serhyi. Não é novato na política, já teve ligações com o partido Voice a partir de 2019, pelo qual concorreu a deputado nesse ano, e depois a presidente da câmara de Kiev em 2020, afastando-se em 2021. "A situação é grave. A Ucrânia desde da revolução laranja, em 2004, escolheu o caminho da democracia, da aproximação à União Europeia, mesmo à NATO, e já mostrou que não quer obedecer ao Kremlin. Repare que tivemos sempre boas relações com todos os países vizinhos, apenas a Rússia não aceita a nossa independência como Estado, nem a nossa independência de ideias" explica Serhyi numa mensagem bem articulada em inglês. " O nosso exército é mais experiente que antes, o exército russo não é maior, é apenas mas longo, mas com o tempo vai encurtar e nós vamos ganhar", observa, convicto.

O centro, que vive um corrupio de voluntários, militares e civis, tem recebido muita ajuda nacional e internacional, de vários países europeus, sobretudo da Polónia, Alemanha e Itália. Mas uma das voluntárias confessa: "Temos muita falta de medicamentos táticos. Compressas grandes, torniquetes, medicamentos para estancar o sangue, analgésicos fortes, e também medicamentos para a ansiedade e o stress. Claro que a covid não passou mas agora ninguém pensa nisso, e se há soldados doentes, porque há, tomam anti-gripais e aguentam. Esta guerra é um problema bem pior, e é a prioridade", conta Natalia Grynko, uma das voluntárias que antes da guerra era programadora e que está de licença sem vencimento. Saiu de Kiev no início da guerra com os seus gatos e com amigos para Lviv em dois carros, numa decisão um pouco precipitada, pois no início do conflito não se percebia o que ia acontecer, mas depois decidiu voltar. Foi a única a fazê-lo do seu grupo. Tinha cá o irmão, estudante universitário e a mãe e eles não estavam preparados para sair.

No centro de voluntários de Serhyi Prytula para já a oferta de equipamentos - que passam também por dispositivos de visão térmica e noturnas, drones civis, muito úteis para revelar posições inimigas na guerra, fardas, botas, de que em tempos houve escassez - está a acompanhar a procura, mas nem sempre. "Às vezes temos equipamentos esgotados por dias. Depois chegam mas acabam logo porque a procura é enorme", confirma Natalia. Este centro, está a ajudar também todos os grupos de defesa territorial que lhe pedem apoio, tanto militares como civis. "Para já baseamo-nos na confiança, há sempre alguém nosso conhecido nos grupos que nos fazem pedidos. E assim há um controlo informal. Tem funcionado bem assim", afirma Maria Pysarenko.

A sede deste partido que ainda não existe é um centro de voluntários que presta auxílio aos militares na retaguarda e situa-se numa zona central da capital ucraniana. Como numa colmeia, todos os voluntários sabem o que têm que fazer, e persiste apenas um murmúrio de conversas curtas e movimentos calculados e já rotineiros, tudo é urgente, coordenado e organizado. Os voluntários, quais abelhas obreiras, tratam das caixas e encomendas que chegam sem parar, como se de campo de girassóis tomado por um enxame se tratasse. Nesta colmeia alguns têm tarefas defensivas e, por isso, envergam armas que não pousam mesmo quando descarregam os caixotes que chegam, ou quando estão prontos para serem entregues.

Podemos fotografar tudo, diz-nos Maria Pysarenko, "exceto os mapas, e as caras de quem não queira". "Os russos têm provado que têm mapas desatualizados porque já atacaram pontos militares desativados há mais de vinte anos". Para já, a guerra prossegue não só com mapas do passado mas também com ideias doutro tempo, pelo menos do lado russo. Do tempo da cortina soviética que isolava a Ucrânia da Europa e do mundo. Do lado da Ucrânia o caminho é a Europa e a liberdade, e quem o aponta é o presidente Zelensky que permaneceu em Kiev, assim como os milhares de ucranianos que permitem que a cidade funcione quase na perfeição, são os militares a quem esta ajuda se destina, são estes voluntários, que deixaram os seus trabalhos para aqui estarem o dia inteiro, os drones civis agora valiosos para os militares, bem como os dispositivos de visão noturna. Pois a noite é longa e aqui ninguém sabe até quando esta guerra, que já leva um mês, vai durar.

dnot@dn.pt

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