Que têm estilos diferentes ninguém duvida. A atual e a ex-procuradora-geral da República repetem alguns alertas nos seus discursos de abertura do ano judicial e coincidem em algumas prioridades - como é o caso do combate à corrupção -, mas Lucília Gago e Joana Marques Vidal vão por caminhos diferentes na forma de atingir os objetivos..As diferenças.Elogios aos procuradores.No seu discurso de abertura do ano judicial de 2018, Joana Marques Vidal dedicou alguns parágrafos a elogiar o trabalho dos magistrados do Ministério Público (MP). "Pelo trabalho esforçado, a dedicação, o rigor, o estudo, a capacidade de resiliência às adversidades e o espírito de missão que têm demonstrado. Pelo muito que contribuíram para o retomar do prestígio e do reconhecimento público do Ministério Público e para o reafirmar da sua autonomia, enquanto princípio indissociável da independência dos tribunais e do efetivo cumprimento dos valores do Estado de direito democrático. E fizeram-no ultrapassando circunstâncias difíceis e até, por vezes, adversas", declarou..Lucília Gago dispensou elogios e pediu aos procuradores, principalmente nas investigações de combate à criminalidade económico-financeira, "responsabilidade a nível de recolha e de consolidação da prova indiciária" e "responsabilidade nas exigências pressupostas numa efetiva direção do inquérito, na delimitação do objeto do processo no cuidado colocado na vertente procedimental e de organização processual"..Estes cuidados - da garantia de investigações com recolha de prova adequada de forma a, se for caso disso, levar mesmo à condenação dos arguidos - foram também uma preocupação deixada quer pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) quer pelo próprio Presidente da Republica.."Os tribunais não têm nenhum objetivo específico de combate à corrupção. Aos tribunais cabe julgar e decidir todos os crimes (...) Os tribunais decidem com base em provas admitidas em julgamento e só condenam quando atingem um nível de certeza quanto à responsabilidade criminal dos arguidos pelos factos de que são acusados. Não condenam com base em meras probabilidades nem com base em indícios não suficientemente corroborados", sublinhou António Joaquim Piçarra..Estas palavras remetem, desde logo, para a recente sentença do caso Vistos Gold, cujo juiz criticou o MP precisamente por não ter apresentado provas suficientemente sólidas para sustentar a acusação aos 21 arguidos, entre os quais o ex-ministro Miguel Macedo. Apenas quatro foram condenados..Na mesma linha, Marcelo Rebelo de Sousa, avisou que não se deve "aceitar como bom a primeira impressão, a primeira notícia, o primeiro juízo de opinião pública, cedendo à tentação de substituir os tribunais com o nosso julgamento pessoal ou de grupo"..A mesma preocupação manifestou Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, para quem "o tempo da justiça não é nem pode ser o tempo da comunicação social e muito menos o tempo das redes sociais"..No entanto avisou que "o tempo da ponderação não pode servir para justificar a morosidade que por vezes caracteriza o andamento da justiça" porque "a demora na aplicação da justiça tende a ser a negação da própria justiça"..Combate à corrupção.Joana Marques Vidal foi mais positiva em relação àquela que é uma prioridade de ambas: o combate à corrupção. A ex-procuradora-geral destacou "criação de estruturas especializadas" no MP com regras próprias, definidas pelo Conselho Superior do Ministério Público, para a colocação dos magistrados respetivos, bem como uma clara aposta na respetiva formação e capacitação, constituiu-se como um fator imprescindível do necessário incentivo a uma melhor e mais eficaz investigação criminal"..Reconhecendo que "ainda há muito por fazer", concluía, em 2018, que se assistia "a um mais eficaz exercício de ação penal, mesmo quando está em causa criminalidade de elevada complexidade"..De recordar que, nesta altura, ainda não era conhecido o desfecho dos grandes processos de investigação de corrupção iniciados ou consolidados no seu mandado..Para Lucília Gago, a situação é menos favorável, considerando mesmo que estamos longe de ganhar a guerra contra a corrupção. "Sob pena de inevitáveis e dramáticas consequências, designadamente de cariz socioeconómico, não podemos ignorar os resultados de múltiplos estudos de distintas entidades que invariavelmente apontam dados reveladores de estarmos longe de obter vencimento na luta contra a corrupção", frisou..A procuradora-geral quer que o MP aposte "na recuperação de ativos" como forma de "desincentivo da prática de crimes", como garante de "que as vantagens desse crime não serão investidas na economia ilícita"..Estatuto do MP.Joana Marques Vidal pedia, na abertura do ano judicial de 2018, um debate "urgente" sobre a reforma do estatuto do MP, um processo que, no seu entender, não podia deixar de ser "uma oportunidade para um amplo e participado debate público"..Pedia um estatuto que consagrasse "um modelo organizacional clarificador das competências e das funções das diversas estruturas hierárquicas e do respetivo relacionamento" e que promovesse "o mérito e o princípio de concurso"..Sobre este estatuto, cuja proposta do governo enviada à Assembleia da República já mereceu a reprovação do sindicato dos magistrados, Lucília Gago, que não subscreveu nenhuma das preocupações sindicais, salientou "uma importante evolução com a aprovação na generalidade" do diploma..Consegue "antecipar uma evolução positiva, em termos globais, particularmente no que se refere ao esforço de racionalização de meios humanos, especialização e valorização do mérito, potenciadores de um maior desempenho funcional"..Mas considera que se "impõem alguns ajustes finais, designadamente os essenciais à plena consagração do paralelismo das magistraturas", os quais prevê que tenham "expressão no texto final que o Parlamento aprovará"..Semelhanças.Autonomia do MP.Neste ponto, Joana e Lucília coincidem. A ex-procuradora-geral pediu que, no âmbito desta revisão do estatuto do MP, lhe fosse consagrada "autonomia financeira, reforçando as condições de exercício efetivo da autonomia"..Lucília Gago afirmou nesta terça-feira que tem "por certo que a autonomia do MP, como princípio basilar do Estado de direito democrático - na qual se inscrevem matérias como a da composição e competências do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) -, será como tal inteiramente preservada, como julgamos absolutamente imprescindível"..E deixou um alerta para a "inevitável turbulência" que poderá ser provocada pelas alterações decorrentes da reforma do estatuto do MP, que colocam desafios numa magistratura com falta de meios humanos. As previsíveis alterações, explicou a PGR, são de apreciável dimensão no funcionamento e na estrutura organizativa e implicam ajustamentos, "cujas repercussões e alcance prático não são totalmente antecipáveis"..A ministra da Justiça, Francisca van Dunem, garantiu que "não está no programa do governo" qualquer proposta de alteração à composição do CSMP..Falta de meios.Tem sido recorrente nos discursos na área da justiça a falta de recursos humanos e materiais. "Os desafios de novas realidades jurídicas, como a cibercriminalidade, suscitam-nos uma profunda reflexão e impõem-nos novas formas de organização e especialização", afirmou Joana Marques Vidal.."Importa continuar e concluir a modernização tecnológica, informática e organizacional iniciada na Procuradoria-Geral da República. É imprescindível reforçar e assegurar os recursos humanos, materiais e periciais da Polícia Judiciária. Bem como das demais instituições que coadjuvam o Ministério Público no exercício das suas competências", reiterava em 2018 a então procuradora-geral da República (PGR), insistindo numa preocupação que já tinha sublinhado em anos anteriores..Nesta terça-feira, Lucília Gago reforçou. "A abordagem a uma multiplicidade de fenómenos criminais, com especial destaque para a criminalidade económico-financeira, exige uma dotação dos imprescindíveis meios humanos e técnicos.".A PGR destacou a importância de uma "resposta qualificada e célere a nível das perícias informáticas e contabilístico-financeiras", para uma maior eficácia e celeridade das investigações, sendo "imprescindível e premente o acentuado incremento da capacidade de resposta das entidades especializadas nesta área, com particular destaque para a Polícia Judiciária, atentas à sua natureza e atribuições".