O discurso masculino-feminino corre no fabuloso e fecundo mundo do vinho desde os seus primórdios. Os vinhos mais tânicos, copiosos e estruturados são tradicionalmente ditos masculinos, enquanto os mais aromáticos e ligeiros levam usualmente a marca feminina. Em termos mais prosaicos, as castas menos extrativas como Pinot Noir e que estão na base da Borgonha que o mundo inteiro aclama e proclama pelos seus vinhos subtis e abertos na cor seriam femininos, enquanto aos mais encorpados e de cor mais carregada calharia o adjetivo de masculino; vinhos para homens a sério..Se quiséssemos ir à matriz ancestral desta bifurcação de género, teríamos de recuar aos tempos do império romano, quando não havia vinho tinto sequer. Este, de facto surge mais tarde, com as práticas enológicas a permitir e aconselhar macerações prolongadas, ou seja mais extração de cor das películas das uvas pisadas, a prática corrente era o chamado vinho de bica aberta, e as polpas eram transparentes ou quase, o contacto pelicular era reduzido ao mínimo. Falham por isso logo na base histórica os filmes épicos que nos falam desses tempos, em que nas festas o vinho corria a rodos, retinto. Por outro lado, ao longo do último século, no Velho Mundo - leia-se Europa - o mercado teve de responder à procura por vinhos encorpados e alcoólicos, de certa forma a elegância deixou de ser o atributo mais valorizado..Bordéus e a nossa Bairrada, que é o berço dos clássicos portugueses, habituaram-nos a vinhos difíceis de beber enquanto novos, dizia-se que havia que esperar por eles. A recompensa era grande, a genial casta Baga criou perfil enológico próprio e os seus vinhos dos anos 30 e 40 são ícones de classe mundial. Mas na Bairrada há vida para além da baga, e que vida! O ressurgimento de certas castas brancas que está a acontecer nos tempos vibrantes que estamos a viver, juntamente com os novos padrões de consumo, está a orientar o foco dos enólogos e criadores de vinhos no sentido dos grandes brancos..Nas Caves do Solar de São Domingos, em Ferreiros, concelho de Anadia, celebram-se por esta altura os 85 anos de existência e laboração do que é um dos mais especiais produtores bairradinos, fundado por Elpídio Martins Semedo. Aguardentes, espumantes e vinhos tranquilos estão no centro da sua atividade desde o início e é uma marca que os portugueses não dispensam. Vicissitudes diversas trouxeram nos anos 70 para a ribalta da empresa Lopo de Sousa Freitas, o grande reformista e espécie de "iron man", com grande visão e muita segurança na gestão. Representa a entrada na era moderna, vinhos de perfil muito diferente mas incrivelmente consensuais. Na liderança enológica e técnica está Susana Pinho que não optou pelo regresso aos vinhos maciços e monolíticos nem pelos vinhos da moda, ligeiros na cor e no grau..Na sequência que se inicia agora, com os 85 anos da fundação da casa, não espanta que a enóloga reagisse ao convite para criar vinhos novos, de leitura pessoal olhando para castas patrimoniais, segundo a sua própria perspetiva. O Anima Mea #01 Bairrada branco 2018 (14%) é o néctar inaugural da série de que falamos, é 100% Cercial e tem um PVP de 30 euros. Os vinhos estremes desta casta tardam em revelar-se, havendo que lhe dar um par de anos até começar a mostrar o seu esplendor, mas uma vez atingido esse exótico patamar, são vinhos eternos, sobretudo quando o talante enológico é o de Susana Pinho. Ao fim de 17 anos ao serviço da casa, sente-se que está segura e feliz com o seu trabalho..Após fermentação em inox, este vinho especialíssimo estagiou 11 meses em barricas novas de 300 litros de carvalho francês com tampos de acácia, a que se seguiram 22 meses em garrafa antes do lançamento no mercado. O vinho tem uma maravilhosa estabilidade na boca, exuberância muito contida, revelando-se como que por camadas ao longo da prova. Talvez seja por isso que a imagem escolhida por Susana Pinho seja a de coração estilizado a sugerir origami. Anima Mea quer dizer a minha alma em latim, e só a criadora deste vinho único pode dizer verdadeiramente o que lhe vai na alma. Mas o vinho fala por si e sobretudo cresce connosco. Grande vinho..Disponível em garrafeiras especializadas e na loja online das Caves do Solar de São Domingos.