Angústia, ansiedade. O que ouvem os psicólogos do outro lado do telefone

Milhares de pessoas já recorreram às linhas de apoio psicológico criadas pelos municípios em todo o país. É a ansiedade que se sobrepõe na maioria dos telefonemas. Mas há casos diversos, que incluem queixas de violência doméstica.
Publicado a
Atualizado a

Ainda a cerca sanitária não tinha sido decretada para o concelho de Ovar, e já a câmara municipal tomava providências para dar apoio psicológico aos habitantes. O estado de calamidade entrou em vigor a 17 de março, mas um dia antes já a linha de apoio psicossocial estava a funcionar. É uma das centenas que estão ao serviço por todo o país, na sua maioria criadas pelas câmaras municipais, que incumbiram os psicólogos do quadro de fazer um serviço inédito: acudir pelo telefone, em tempo de pandemia.

"A nossa começou a funcionar mesmo antes de ser divulgada", disse ao DN Ana Cunha, vereadora do Desenvolvimento Social, Saúde e Educação. Uma vez integrada no Gabinete de Crise, a linha criada em Ovar é de apoio psicossocial. Quer dizer que ali se filtram os pedidos de ajuda psicológica, mas também de ordem social. Em conjunto trabalham duas psicólogas, três técnicas de serviço social e ainda uma socióloga, "que faz a articulação com toda a rede social", acrescenta Ana Cunha.

Até ao final desta semana a linha de Ovar já recebera mais de 1520 chamadas. "A maioria, cerca de mil, prende-se com apoio social. Mas os pedidos de apoio psicológico têm vindo a aumentar nos últimos dias", sublinha a vereadora, o que atesta uma tendência comum: à medida que avança o período de isolamento social, elevam-se medos, angústias, um quadro de ansiedade que leva ao pedido de apoio psicológico.

"O que começa a tornar-se mais visível é a ansiedade", confirma a vereadora Ana Cunha, que considera de vital importância este serviço no tempo presente.

Na mesma região centro mas noutro distrito, a Câmara Municipal de Leiria avançou também para a criação de uma linha de apoio psicossocial. Num concelho onde o número de casos não é significativo (38, segundo os últimos dados da DGS), a autarquia acabou por colocar apenas uma psicóloga a fazer atendimento de chamadas, entre as 09.00 e as 16.00. A vereadora Ana Valentim revelou ao DN que o serviço atendeu até agora cerca de 40 chamadas, embora nem todas digam respeito ao apoio psicológico. "As pessoas ligam pelos mais diversos motivos. Mas sobretudo porque precisam de ser ouvidas. Notámos um aumento nos últimos dias, e uma crescente ansiedade", diz Ana Valentim.

O foco nos lares de idosos

Não muito longe, em Pombal, o concelho que mais casos regista no distrito de Leiria (52), a câmara também criou uma linha similar ainda durante o estado de alerta. A psicóloga Mariana Meia-Via divide esse trabalho diário com a colega Maria Inês Costa e a socióloga Ana Lúcia Ferreira, num processo que se revela em crescendo.

"Ao princípio as pessoas ligavam sobretudo com dúvidas em relação ao covid-19, queriam saber para onde ligar, onde deveriam dirigir-se se tivessem sintomas, por exemplo. Mas nos últimos dias a situação alterou-se", conta a psicóloga. Foi quando a linha começou a ser mais solicitada para o fim a que se destina, maioritariamente. Os casos de infeção no concelho de Pombal concentram-se em larga escala num lar de idosos, na aldeia da Cumieira. Já morreram quatro idosos e 17 testaram positivo. "Decidimos contactar não apenas os idosos como também as técnicas que lá trabalham, e percebemos os níveis de ansiedade e preocupação. De então para cá temos estado a fazer um contacto permanente, um acompanhamento que é importante nesta fase", adianta a psicóloga, numa altura em que o serviço está focado não apenas neste como nos restantes lares de idosos do concelho. Mas há outras preocupações: os trabalhadores do município, por exemplo, que têm estado também eles na linha da frente a apoiar a criação de serviços diversos no combate ao covid-19. "A partir da próxima semana vamos prestar também atenção especial a esses casos", sublinha Mariana Meia-Via.

A geografia do apoio psicológico ao telefone tem em Alcobaça um ponto curioso. Ali a linha é exclusivamente de apoio psicológico, e foi das primeiras a ser criada no país. João Mota e Dulce Alves dividem esse trabalho desde o início de março. É certo que o concelho (um dos mais visitados na rota do turismo) tem poucos casos positivos de infeção pelo novo coronavírus (10), mas os dois psicólogos confrontam-se não raras vezes com chamadas vindas de outros pontos do país. "As pessoas vão à net, pesquisam por "apoio psicológico" e já nos aconteceu atender pessoas de Beja, por exemplo", conta ao DN João Mota, que nunca desliga o telefone. Ele e a colega atendem quem lhes ligar, de dia ou de noite, mesmo que seja fim de semana. Têm atendido entre cinco e dez chamadas por dia.

Ataques de pânico e depressões que regressam

Do lado de lá do telefone tentam "ajudar a comunidade a lidar com situações de grande inquietude, durante este período de pandemia. Muitos dos contactos vão exigir uma monitorização longitudinal. As problemáticas são diversas, mas centram-se mais nas questões de grande fragilidade emocional, provocadas pela insegurança e incerteza dos tempos que estamos a vivenciar", considera João Mota. Ao longo destas semanas tem sido o ouvido atento para muitas situações de ansiedade, "alguns ataques de pânico", mesmo.

"Em alguns casos, existe comorbilidade de sintomas. Há também pessoas com historial clínico de ansiedade generalizada, ataques de pânico e depressão que se encontravam relativamente estabilizadas e que agora, pelas circunstâncias que vivemos, subitamente estão a ter novas crises que exigem uma atenção e uma avaliação atenta e cuidada." Há ainda outras situações, de "pessoas extremamente ativas, que de repente são literalmente obrigadas a ficar em casa, têm dificuldade em lidar com o facto de não poderem estar com os pais, já com alguma idade, temem pela sua saúde e ao mesmo tempo têm de prestar apoio aos filhos temendo também por algo que lhes possa acontecer. É sobretudo o medo aterrador de não poder ser capaz, de não conseguir".

João Mota lembra que, além destas problemáticas, "temos todas as outras que não deixaram de existir e que, em alguns casos, acreditamos que irá aumentar o número de incidências. Os idosos e as pessoas que vivem isoladas, algumas com medo de serem burladas, as situações de violência doméstica e as dificuldades, nesta fase, no encaminhamento para casas-abrigo e restantes casos com crianças jovens e adultos carenciados".

Os dois psicólogos de Alcobaça sabem que, uma vez confinados, "perdemos as nossas rotinas, diminuímos a nossa atividade física e, às vezes, começamos a apresentar alguns sintomas como ansiedade, pânico, depressão, irritabilidade, angústia, insónias e em alguns casos stress pós-traumático". É esse o relato que fazem das últimas semanas, em que se esforçam por tentar "validar o que as pessoas estão a sentir".

João Mota sublinha que se trata de uma situação atípica que necessita de uma intervenção e avaliação atenta e cuidada: "O facto de estarmos em isolamento social, o desconhecimento que temos sobre o vírus e sobre o futuro, faz que seja expectável que nos sintamos ansiosos, com medo, preocupados, tensos e sem controlo na situação. A ansiedade é um sentimento expectável nesta fase que, em maior ou menor grau, nos afeta a todos e que podemos aprender a gerir. Importa também perceber que esta situação não vai durar para sempre, não vamos ficar em isolamento o resto da vida. Se cumprirmos com rigor todas as recomendações da Direção-Geral da Saúde, o risco de contágio reduz consideravelmente.

Psicólogos em voluntariado

Além dos municípios, há outras entidades que, em tempo de pandemia, criaram ou reativaram serviços de apoio psicológico. É o caso da plataforma Friends2Talk, um projeto de profissionais de saúde mental que nasceu há cerca de um ano para prevenção da solidão através de uma linha de telefone. Mas há um ano a ideia não vingou: poucos contactos e falta de suporte financeiro acabaram por suspender a iniciativa de Luís Couto, mentor do projeto. Por estes dias, lembrou-se de o reativar, noutros moldes (pelo menos para já). "A nossa equipa de profissionais de psicologia decidiu, em conjunto, que durante o estado de emergência decretado, todos os nossos serviços serão gratuitos." Ao todo, são 12 psicólogos que estão em linha, 24 horas por dia.

"Apesar de a plataforma indicar valores, informamos que não são chamadas de valor acrescentado e devem ser ignoradas, visto que parametrizámos a plataforma para que nenhum valor seja cobrado a quem necessita", refere Luís Couto.

Sempre que uma chamada é realizada, "todos os profissionais de saúde (apelidados de amigos pela plataforma) atendem via telemóvel nas suas residências, onde estão a cumprir o isolamento em total segurança. É o nosso contributo para apoiar quem necessite durante todo este período", conclui.

Bastonário sublinha a importância da especialidade

O bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses tem acompanhado a forma como as autarquias portuguesas estão a mobilizar-se para prestar apoio social. Francisco Miranda Rodrigues disse ao DN que "só pode ser considerado positivo" esse passo que muitos municípios estão a dar, sobretudo "com esta rapidez". Ainda assim, o bastonário adverte para a necessidade de estar sempre reunido um conjunto de "conhecimentos e competências". Precisamente por essa razão a Ordem libertou entretanto informação a respeito, para que todos os psicólogos ao serviço possam consultar, com "alguns cuidados a ter na construção deste tipo de serviço".

Francisco Miranda Rodrigues saúda a capacidade de adaptação à mudança que os psicólogos têm demonstrado (à semelhança de outras classes), numa altura em que a própria Ordem ajudou a criar uma linha de aconselhamento psicológico para o Serviço Nacional de Saúde, em parceria com a Fundação Gulbenkian. O conjunto de 63 psicólogos ao serviço da linha tem o perfil que o bastonário gostaria de ver replicado nas linhas dos municípios: especialistas em psicologia clínica e da Saúde, e formação específica em crise. Francisco Miranda Rodrigues lembra que "Portugal tem neste momento cinco a seis mil profissionais com esta especialidade". Ao todo, há 20 mil psicólogos no ativo em Portugal.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt