No Beco do Mário, lugar da Figueira, na freguesia da Graça, neste domingo é dia de festa. Cá fora, as sardinheiras, os lírios e os amores-perfeitos anunciam vida, lá dentro tudo cheira a novo. "Ainda não acredito", diz ao DN Anabela Paiva, a poucas horas de receber a chave da casa nova. "Ó mãe, é mesmo verdade?", perguntaram-lhe os filhos, quando um dia destes ela lhes deu a boa-nova. Inês e César têm agora 13 e 16 anos, respetivamente. Anabela já fez 47. Os últimos dois aniversários passou-os na casa dos tios, na Lameira Cimeira, para onde se mudaram quando a sua casa ardeu, no fogo de Pedrógão Grande, a 17 de junho de 2017..Nessa noite, enquanto tudo ardia e caíam a conta-gotas as notícias das mortes, até desabarem nas 66 pessoas (a maioria na estrada 236-1, encurraladas pelas chamas), Joel Silva começou a engendrar uma forma de cuidar dos vivos. A partir de Pombal, onde mora, criou o movimento Reconstruir o Pinhal Interior Norte. Mobilizou primeiro os amigos, depois os conhecidos, e num instante tinha gente de todo o país a querer ajudar na obra. Mas isso foi no verão de 2017, um ou dois meses depois do fogo. Aos poucos, o grupo foi esmorecendo. No sábado passado, eram meia dúzia os voluntários na obra. E foi assim nos últimos meses, em cada sábado..Quando criou um grupo no WhatsApp para juntar boas vontades e decidiu pôr mãos à obra, Joel Silva achava que no Natal seguinte já seria possível ter a família instalada na casa nova. Foi ele quem serviu de elo de ligação entre todos, quem bateu à porta das câmaras para se propor a levar por diante esta empreitada. A ideia era "provar que o amor pode tudo, até reconstruir exclusivamente assim uma casa". Mas a realidade atravessou-se no caminho. "A partir daquela reportagem do compadrio, que a TVI emitiu, tudo se complicou. As pessoas passaram a desconfiar de tudo, e isso notou-se na mão-de-obra voluntária", contou ao DN o dinamizador do grupo, que nas últimas semanas começou, também ele, a acusar algum cansaço.."Agora só quero que o dia 22 termine depressa. Nessa noite, depois de entregar a casa, saberemos que a missão foi cumprida e que, afinal, é possível." Diz que nunca duvidou, mas houve alturas em que foi difícil convencer-se a ele próprio. A meio desta semana, enquanto esperava pelos móveis e pelos eletrodomésticos que a Cruz Vermelha doou, ainda não sabia o que ia fazer com esta experiência. Tem apenas a certeza de que aos sábados vai pegar na filha, de 4 anos, e "fazer coisas banais, como ir ao mercado, comprar o jornal ou ir ao café"..O valor do xisto.A moradia de Anabela Paiva foi reconstruída exclusivamente por voluntários, gente dos concelhos de Pombal, Leiria e Ansião que integram o grupo Reconstruir o Pinhal Interior Norte. Todos os materiais foram também cedidos gratuitamente, num ato único de todo o processo de reconstrução..Joel Silva não arrisca nomear as pessoas e empresas que se uniram em volta deste objetivo, mas não esquece nenhum dos que abriram as portas das empresas e contribuíram para erguer a casa. Nem os que as fecharam. Ou os que fizeram promessas nunca cumpridas..Na aldeia a casa destaca-se. Foi concebida pelo arquiteto Pedro Santos, é uma das maiores e talvez aquela que mais respeita a paisagem envolvente. O DN acompanhou o dia quente de julho de 2017, em que a equipa visitou o local pela primeira vez. Como estamos na rota das Aldeias de Xisto, este foi o material de eleição. Mas as pedreiras da região já pouco trabalham e foi preciso ir ao norte encontrar a quantidade necessária. "Em dias bons, conseguíamos fazer um metro e meio por sábado", recorda Joel, ao cabo desses 120 dias passados na Figueira, compostos de um ritual: o almoço partilhado, o café na taberna da D. Rosalina - que se tornou conhecida após o fogo - alguma vida devolvida àquele lugar do interior desertificado..Tudo o que o fogo levou.Anabela encolhe os ombros, enquanto olha em redor. "Eu sei que eles foram incansáveis, que está tudo muito bonito, mas chego aqui e faltam-me as minhas coisas." Era ali, entre o poço e a estrada, que tinha o seu quintal, que plantava a horta. Nesta altura era hábito ter couves viçosas, que haveriam de acompanhar o bacalhau cozido com todos, regado com azeite produzido a partir da azeitona que apanhava. Mas o fogo daquela tarde-noite de 17 de junho levou tudo. Quando no dia seguinte regressou a casa, com esperança de a ver apenas chamuscada, deparou-se com uma imagem que até hoje não lhe sai da cabeça: o azeite a escorrer pela encosta abaixo, o resto de tudo. O fogo tinha destruído por completo a casa, o carro do pai, a máquina de costura, o ouro, tudo o que a família tinha. "Sabe o que é ficar sem uma fotografia? Só tenho duas dos meus filhos porque tinha-as no trabalho, e uns dias antes mandei fazer uma do meu pai, que ainda estava no fotógrafo. Do meu casamento tenho a que a minha cunhada entretanto me deu. Queimou-se tudo.".Anabela Paiva vive agora o Natal como "um dia igual aos outros". Aos problemas de saúde da filha (asmática) juntaram-se os do foro psicológico. Sobreviver ao fogo - ao contrário das 66 vítimas da região - não foi de todo sinal de lhe escapar. A vida nunca mais foi a mesma. Os filhos deixaram de pedir presentes. Nas aldeias varridas pelo fogo a solidariedade é quase uma palavra vã, talvez gasta nos dias que se lhe seguiram. "As pessoas ficaram más. Ficaram revoltadas umas com as outras", explica. Na aldeia da Figueira - cuja antiga escola primária foi transformada na sede da Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande - arderam 15 casas, nem todas de primeira habitação. Mas a dela era. Todos os vizinhos já moram há muito nas casas reconstruídas. Nesta semana, ela passou todo o tempo livre "a embalar coisas", tudo o que foi juntando ao longo destes dois anos. Ainda não sabe se passa lá o Natal ou se faz a mudança só em janeiro. Seja como for, é mesmo verdade.