Ana Catarina. A melhor do mundo que sonha com a Bolsa de Valores
Ana Catarina é a melhor guarda-redes de futsal do mundo, mas isso não é novidade. É a segunda vez que acontece em seis anos, e nos outros quatro ficou em segundo lugar. Isso diz bem da qualidade da Spider, alcunha dada pela capitã do Benfica (Inês Fernandes) à sua guarda-redes. Começou a jogar com 12 anos e a tentar marcar golos, mas quando recuou até à baliza descobriu uma vocação e uma paixão sem igual. Por amor à bola e ao futsal há um outro sonho em espera: ser corretora da Bolsa de Valores.
A portuguesa de 28 anos recebeu 450 pontos na votação do portal Futsal Planet, impondo-se às brasileiras Ana Carolina Caliari Sestari, do Montesilvano C5 (Itália), e Patricia Moraes Faria "Giga", da AFF Chapecó (Brasil). A distinção deixou-a "extremamente orgulhosa", pois, como disse ao DN, "mesmo não sendo um prémio com o selo FIFA. é a maior distinção que há no mundo do futsal e devia ser um exemplo a seguir pela FIFA".
Agora foi ela a dar a notícia à família. Mas em 2018, quando foi distinguida pela primeira vez, estava no bingo e foi a mãe que lhe ligou a dar a notícia. Das mensagens que recebeu e que a deixaram com uma lágrima no canto do olho destacou as da família e do melhor amigo. "Os meus pais iam todos os dias comigo aos treinos. Vivíamos em Vila Franca de Xira e os treinos eram no Estádio da Luz, em Lisboa, às 22.00. Regressávamos já depois da meia-noite, e eu no dia a seguir ia para as aulas e eles iam trabalhar. Era cansativo. Devo-lhes tudo, a paixão e a perseverança. Assim que eu entrei para o futsal, os meus sonhos passaram a ser os sonhos deles", confessou a jogadora ao DN.
Ana é guarda-redes do Benfica e da seleção nacional, mas para chegar ao topo houve algumas pedras pelo caminho. O pai foi jogador de futebol - partiu uma perna quando jogava no Alhandra e pôs fim a uma "promissora carreira" - e passou-lhe a paixão pela bola. E uma professora encaminhou-a para o futsal: "Desde que me lembro que jogo à bola com o meu pai. Na escola, uma professora de Educação Física que também era jogadora de futsal levou-me ao clube da terra, em Vila Franca de Xira, o Vilafranquense. Tinha 12 anos quando comecei a ser federada e joguei no distrital de Lisboa."
O jogo e a competição despertaram nela um desejo insaciável de vencer: "Eu gostava de tudo, eu adoro competir, até no dia-a-dia e com coisas mínimas eu compito. O jogo, o querer ganhar e a paixão pelo futsal em si."
Começou por jogar na frente, mas hoje interpreta o papel de guardiã da baliza: "Eu só queria ter a bola e jogar à frente, não gostava nada da ideia de ir à baliza, mas num treino fui e a partir daí não quis sair mais." Porquê? "Eu gosto mesmo de ser guarda-redes de futsal, não é loucura ou coragem, é paixão por defender. Aquela parte em que a bancada se levanta toda e já está a gritar golo e de repente senta-se e eu ouço "oh" [espanto pela defesa] é música para os meus ouvidos", respondeu a melhor guarda-redes do mundo.
Jogar com um dedo partido foi dos maiores sacrifícios físicos que já fez. Devia ter curado a lesão num mês, mas jogou dez dias depois: "Ninguém nos prepara para esse tipo de coisas. Ou aguentas a dor e recordas porque o fazes, ou não aguentas. Quem está na bancada não se lembra que também tens vida, problemas, e se calhar não tens de o fazer. Se nós nos propomos a ir a jogo é porque teoricamente estamos bem. Quem quer ser atleta de topo tem de ter uma grande capacidade mental, e isso constrói-se ao longo dos anos, não nascemos com experiência."
Na adolescência não tinha grandes referências, até que um dia viu uma reportagem sobre João Benedito, o ex-guarda-redes do Sporting e da seleção nacional. E ficou "maravilhada com a técnica dele".
Descoberta pelo Benfica aos 13 anos, num torneio de verão, foi convidada a integrar o plantel sénior de imediato. A adaptação não foi fácil. Jogava com "senhoras" de 20 e 30 anos e quando chegava a casa chorava por não se conseguir adaptar. O choro transformou-se em revolta interior, afinal estava no Benfica, clube do coração, e viver o sonho dependia só dela. Quando teve uma oportunidade agarrou a titularidade, e a pior fase passou.
A carreira foi fluindo sem que houvesse uma altura em que tivesse de parar para pensar que podia ser jogadora de futsal a tempo inteiro. Teve uma experiência na liga italiana (Lazio) com o intuito de conhecer outra realidade e nunca a de fazer carreira como profissional. Para isso teria de emigrar e jogar pelo menos uma década lá fora: "A realidade do futsal feminino em Portugal não dava para pensar em ser profissional. Tirando o Benfica e o Sporting, não acredito que haja contratos."
Defender a baliza do clube é diferente da seleção. "No Benfica tenho a responsabilidade dos adeptos, na seleção respondo por todos os portugueses", distinguiu a guarda-redes vice-campeã europeia por Portugal em 2019. Com três títulos nacionais e 12 taças conquistadas, na primeira fase do campeonato 2020-21 só sofreu cinco golos em cinco jogos.
Ana tem mais do que uma missão como jogadora. "Eu posso nem jogar num Mundial oficial da FIFA, mas se as jogadoras mais jovens tiverem a oportunidade de o fazer, a minha luta vai valer a pena. Ajudar a fazer o caminho também é muito digno", defendeu a internacional portuguesa por 71 vezes. Ana preocupa-se com o futuro da modalidade e assume a sua quota-parte de responsabilidade: "Durante o confinamento do ano passado, quando as competições pararam, ponderei abandonar as redes sociais. Há muito lixo que não é saudável para quem não fizer a reciclagem, mas depois pensei: "Não posso fazer isso, sou a Ana Catarina do Benfica e da seleção, tenho milhares de seguidores e não posso abandonar as redes sociais porque assim vou estar a abandonar o futsal.""
Com contrato no Benfica, no ano passado Ana Catarina fez uma pausa nos estudos de Finanças Empresariais para se concentrar no futsal. Culpa dos investimentos financeiros e dos horários das Bolsas de Nova Iorque e Hong Kong. Os horários de abertura e fecho das bolsas não são compatíveis com os horários de uma profissional de futsal. Pensa retomar o curso no próximo ano e até tirar uma licenciatura em Gestão e Desporto. "Investir na Bolsa exige muita ponderação e não se fica rica de um dia para o outro, mas acredito que um dia possa lá chegar", considera.
Não passa um dia sem treinar, mesmo em férias. Seja no ginásio, em casa ou na rua, não vive sem fazer desporto. Além de ser "supercompetitiva", é "divertida". Diz que não se dá a conhecer a qualquer pessoa e que isso lhe vale alguma fama de arrogante - prefere o termo tímida e garante "que gosta de ter o seu canto". Ana gosta de ler, seja biografias, história ou balanços financeiros - a crise económica de 2007-08 fascina-a, tal como o livro The Subprime Solution, de Robert J. Shiller.
Garante ser "uma pessoa normal", que adora cantar. Uma das músicas preferidas é de Anselmo Ralph, Agora não Me Toca. Uma letra que não podia estar mais em desacordo com o que pretende. Ana quer que a bola toque na mão, na perna, na barra ou no poste. Qualquer coisa que evite o golo serve a sua missão de guardiã da baliza.