Amor, escrutínio e maldizer

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A presidência de Marcelo Rebelo de Sousa acabou. Algo começa a evidenciá-lo, mais do que a sua demorada adaptação à maioria absoluta do PS, do que o momento em que afugentava uma mosca enquanto era entrevistado na autoestrada ou do que a enésima conferência de imprensa a defender o governo. Depois da estabilização política em 2016, da saída de défice excessivo em 2017, da crise dos fogos nesse ano, da pandemia em 2020 e da guerra europeia deste ano, o protagonismo do Presidente da República caminha para o esgotamento. 2022, significativamente, representa o regresso do país ao seu equilíbrio constitucional: há um primeiro-ministro maioritário no Parlamento e há um líder da oposição maioritário na sua área política. O espaço, para um Presidente da República, estreitou-se. Para Marcelo Rebelo de Sousa ainda mais.

Não que a sua ligação aos portugueses tenha esmorecido, mas porque esse amor ‒ gerado no pequeno ecrã e consumado nos gloriosos anos em que ganhámos o Euro, a Eurovisão e a ONU - enfrentará tempos de aperto, onde o escrutínio olhará para quem manda e não para quem anda. Marcelo não deixará de ser Marcelo, tal está mais que provado, mas a paisagem política estará menos aberta à sua centralidade. Ele, que foi um contrapeso silencioso aos impulsos menos racionais da "geringonça", nada pode fazer contra a atual supremacia parlamentar do Partido Socialista. Ele, que pediu mil vezes a Rui Rio que fizesse oposição, tem agora um homem no PSD que não fará outra coisa. Sobra-lhe o quê?

Responder-me-ão que há muito mais para fazer - por fazer, especialmente - e não é mentira. Claro que há. O problema é que o Presidente, frequentemente certeiro na avaliação de problemas, raramente contribui para a sua resolução.

Marcelo apontou ao perigo dos populismos no seu primeiro ano de mandato, mas o Chega terá uma bancada com dois dígitos de deputados quando sair de funções. Marcelo diagnosticou a crise na direita antes de Costa ganhar a sua primeira eleição (em 2019), mas não parou de travar a oposição da direita, escudando o governo antes de este ser criticado, hibernando cada trapalhada ministerial antes de a oposição sequer acordar. Em nome da "estabilidade", tolerou todas as instabilidades a Costa: de António Domingues na Caixa, a Pedro Nuno no aeroporto, do Chefe da Armada substituído sem o seu conhecimento, a um elenco governativo comunicado aos jornais antes de a Belém.

Marcelo elevou o papel das Forças Armadas na luta contra os incêndios, contra a covid-19 e contra as novas ameaças externas, mas viu Costa reduzir o Orçamento da Defesa e dizer que os compromissos com a NATO só seriam cumpridos com dinheiro europeu. Marcelo visitou a China com a coragem de falar em liberdade religiosa num lugar onde se é torturado por isso, mas compactuou com uma política externa que insiste em apostar em Xi Jinping. Marcelo preveniu para os excessos da maioria absoluta, mas deixa que eles se acumulem há meses. Marcelo fez um discurso inteiro sobre a reconciliação do tempo de hoje com o da Revolução, do Portugal de Abril com aquele que antecedeu as repúblicas, mas o país prossegue polarizado entre os duelos de Ventura e Santos Silva e um comissário do cinquentenário da democracia que negligencia o 25 de novembro. Marcelo simboliza como nenhum outro a possibilidade de encarar a História de frente, sendo filho de um regime e fundador do outro, mas pouco fez para moderar os que se julgam donos deste ou para contrariar os que pretendem instaurar um novo. Marcelo, eleito como católico, tinha uma responsabilidade única na consciencialização de que a Igreja errou no modo como lidou com os abusos dos seus padres, mas falhou em tomar uma posição afirmativa.

Do pico da sua praia, o Presidente anteviu todas as batalhas, todos os bons combates, nada fazendo quanto a eles, além de anunciar que aí vinham. E de que serve ter razão antes do tempo, se nada se faz para o moldar? De que serve tamanha popularidade se não se a usa quando o país precisa que o faça? De que serve ser insubstituível se o vazio que deixará colocar o restante em causa?

Infelizmente, de nada.

Ao suspender o cargo na sua personalidade - não por ambição, que já nem a votos vai; mas por natureza, que já a votos foi -, a presidência de Marcelo Rebelo de Sousa terminou porque, na verdade, nunca começou.

Colunista

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