Uma mulher passa por uma rua do Belsize Park, em Londres, como se vê pela cabina telefónica vermelha. A mulher diz: "Uma das vantagens de viver neste prédio é a música clássica e como ela é tocada, de manhã e à tarde." E: "Conheço pessoas que se habituaram a passar na rua e ficar, paradas, a ouvi-la." Todos os dias. A ela, à senhora do n.º 6..Frágil, de costas curvadas, o que o banco sem apoio mais acentua, casaquinho de andar em casa, duas voltas de pérolas e o piano. Ela sorri, já saberemos quanto isso vale. Toca piano. Os dedos são garras, disformes e decididos. É a senhora do n.º 6, Alice Sommer. Vive sozinha, tem 109 anos..Na cama, cabelos ralos e aqueles sinais na cara, de velhinha. Mas, outra vez, o sorriso, agora nítido, que reconhecemos irmão das mãos, disforme e poderoso, belo quando passa para os olhos, acesos. Pernas arrastadas, trôpega, curvada e, de novo, os dedos a mandar nas teclas. Diz: "Às dez horas começo a tocar e no prédio dizem: "Olha, são dez horas!"" Ri-se, porque talvez não tenhamos entendido a alegria que isso é. Arranca a última nota e diz-nos: "Isto é Bach.".Alice nasceu em Praga, em 1903. Em garota, a mãe levou-a a um concerto em Viena, a Sinfonia n.º 2, de Mahler, e falou com o compositor. Em Praga, os pais faziam saraus culturais, frequentados por Kafka: "Era nosso amigo, contava histórias que eu esqueci." Alice abre a palma da mão, para nos chamar a atenção: "Mas lembro-me da atmosfera." A memória é impressionista, vamos sabendo. Volta ao piano. Diz: "Beethoven. Ele é um milagre.".Alice será pianista, saltará de ensaios a concertos. Um dia, repara num violinista. Ela diz-nos: "Leopold." Ela diz: "Leopold", e faz como um gato, ronronando de prazer com os ombros. Ser lembrado, assim, depois de 80 anos... Casaram--se e ela avisou: se amares outra mulher, parte e seremos amigos. Tiveram um filho, Raphael. Um dia, ele tinha 3 anos e ouviam um disco no gramofone. Num andamento, "fortíssimo", o bebé desatou a chorar e explicou-se: "A música é tão bonita." Agora, os olhos de Alice partiram para longe. Diz: "Foi assim", e recosta-se na cama.."Com a música sempre fui feliz." Alice chama a sua melhor amiga, para falar de outras coisas. Porque há que falar de outras coisas. A melhor amiga também nasceu em Praga e conta: "O dia foi 15 de março de 1939, uma quarta-feira." As tropas alemãs entraram na cidade, as motos com sidecar, impecáveis, mas trazendo a maior das desordens. Os judeus, como Alice e a amiga, começaram por não poder ter piano de cauda, nem animais domésticos. Levaram o cão, à amiga: "Como explicar ao cão que houve uma invasão alemã e dizer-lhe que foi confiscado?" Seguiu-se o pai. E, à Alice, Leopold..Alice escondera um pequeno piano vertical e tocava. Pode-se tocar piano baixinho? Quando ela e Raphael foram deportados, um vizinho alemão e nazi veio despedir--se: "Passei horas a ouvi-la, quero agradecer-lhe, vivemos tempos difíceis." (Um dia, entrevistei Ilse Losa, a escritora judia, que se refugiou em Portugal. Nos anos 1950, ela, com vários mortos nos campos de concentração, ousou voltar à sua aldeia, perto de Hanôver. O homem do talho reconheceu-a: "Oh, Ilse, o que nós sofremos.").Alice foi para um estranho campo de concentração, Theresienstadt, na Boémia - um gueto para os judeus da Mitteleuropa, a Europa Central culta e de artistas. Era visitado três vezes ao ano pela Cruz Vermelha e os nazis quiseram inventar uma mentira: teatro, orquestra e o ator Kurt Gerron, prisioneiro, que contracenara em O Anjo Azul, foi obrigado a fazer um filme de propaganda, antes de ser gaseado. Alice tocava piano, deu mais de cem concertos. Rafael cantava no coro das crianças, bem arranjadas e alimentadas. Mas os olhos, talvez....A sua melhor amiga conta que viu Alice a tocar em Theresienstadt : "Foi mágico. Era como se voltássemos a um mundo civilizado." E Alice: "A música é Deus." Os nazis, afinal, não mentiam, criaram uma verdade funda. Pelo menos, enquanto a música se ouvia. A mãe de Alice morreu num campo de concentração. Leopold morreu em Dachau. Alice e Raphael sobreviveram. Ele também foi músico, violoncelista, e morreu aos 64 anos, de uma noite para outra, sem sofrer. Alice está tão grata por isso. Depois, ela deixou que lhe fizessem este filme, A Senhora do n.º 6, tinha 109 anos, era a mais velha sobrevivente do Holocausto. Morreu no ano seguinte, em 2014. E, nesta semana, a RTP 3 exibiu o filme..O primeiro movimento da Sinfonia n.º 2 de Mahler pergunta: há vida depois da morte? A Senhora do n.º 6 garantiu-nos que há vida antes da morte.