América Latina: do recorde de infeções no Brasil aos exemplos positivos de Uruguai e Paraguai

Depois da Europa, a América Latina é o novo centro da pandemia de covid-19. Mas nem todos os países estão a reagir da mesma forma.
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Enquanto a Europa desconfina e se adapta a um novo "normal", apesar dos temores de uma segunda vaga da epidemia, o coronavírus continua a sua progressão exponencial na América Latina e no Caribe, onde já se registaram mais de 100 mil mortes, mais da metade das quais no Brasil.

Desde o mês passado o número de casos triplicou neste subcontinente, povoado por 630 milhões de pessoas, que regista agora 2,2 milhões de casos, quase o mesmo da Europa, incluindo a Rússia. E é, neste momento, responsável por um quarto dos casos de contaminação e um quinto das mortes relacionadas com a covid-19 em todo o mundo. O número de pessoas infetadas duplicou em menos de um mês. O Peru (264 mil casos) e o Chile (250 mil) têm mais casos do que a Itália (239 mil), com populações duas e três vezes menores, respetivamente.

"Mas nem todos os países testam nas mesmas quantidades, nem testam da mesma maneira", explica Carlos Arturo Alvarez Moreno, especialista em doenças infecciosas e professor da Universidade Nacional da Colômbia, citado pelo Le Monde. O Chile testa muito com testes virológicos, mas no Peru são testes sorológicos.

Um indicador mais transparente é o de mortes por milhão de habitantes. Mas, novamente, os números devem ser contextualizados: a 23 de junho, o Chile teve 7 100 mortes relacionadas com o coronavírus, se incluirmos, conforme recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), as mortes "suspeitas", ainda que não confirmadas por um teste. Isto significa cerca de 380 mortos por milhão de habitantes, um número mais próximo do da França (440).

Por outro lado, o Brasil, apesar do recorde de 54 mil casos novos de contaminação num único dia, a 19 de junho, ultrapassando atualmente os 1,18 milhões de casos no total, tem 250 mortes por milhão de pessoas. Mas, também aqui, o número de testes permanece insuficiente e pode significar uma subestimação do número real de casos, de acordo com Mike Ryan, diretor de emergências da OMS, citado pela agência Reuters.

Michael Ryan, reforçou na quarta-feira que a pandemia de covid-19 na América Latina ainda não chegou ao seu pico, o que pode acontecer nas próximas semanas em vários países, de forma distinta.

No entanto, apesar de a América Latina se ter tornado o novo centro da pandemia mundial de coronavírus, há dois pequenos países, Uruguai e Paraguai, que resistem à tendência regional e podem reivindicar - neste momento - uma vitória quase total contra o vírus.

Embora sejam diferentes - o Uruguai é um país progressista e tem o menor índice de pobreza da América Latina, enquanto o Paraguai tem estimativas de pobreza de 30 a 50% e está cheio de corrupção - os dois países mantiveram surpreendentemente baixas as taxas de mortalidade de covid-19. Até agora, houve apenas 13 mortes no Paraguai e 25 no Uruguai, apesar das fronteiras terrestres que os dois países têm com o Brasil, onde a pandemia já fez mais de 50 mil vítimas.

Testar muito para ter sucesso

Livre da corrupção endémica e dos conflitos políticos que atormentaram a maioria das nações latino-americanas nas últimas décadas, em março o Uruguai passou de um período de 12 anos de administração de centro-esquerda para um governo de centro-direita, com o novo presidente, Luis Lacalle Pou, que manteve as políticas sociais anteriores.

Os uruguaios têm uma longa tradição de políticas sociais - incluindo um amplo sistema nacional de sáude e quase 100% de acesso à água potável canalizada - que parece estar a ser um fator chave na contenção do vírus.

O Uruguai está agora a reabrir gradualmente as escolas e centros comerciais, embora com distanciamento social, máscaras e testes maciços.

Adaptar-se ao contacto físico reduzido não foi uma tarefa fácil num país onde os beijos e abraços calorosos são o modo padrão de saudação, e onde o chimarrão passava entre amigos e familiares que saboreavam a bebida parecida com o chá.

"A chave do nosso sucesso tem sido a deteção rápida de casos e o isolamento", afirmou Rafael Radi, um dos principais assessores do governo para a covid-19. O Uruguai tem realizado tantos testes que é o quarto no mundo, depois da Nova Zelândia, Austrália e Tailândia, no número de testes realizados por novo caso confirmado. O Uruguai realiza 1 610 testes por novo caso confirmado. Em comparação, os EUA e o Reino Unido realizam apenas 52 e 21 testes, respetivamente .

Paraguai e Uruguai: de olho no Brasil

Os testes generalizados em Rivera (no Uruguai) não têm paralelo em Livramento (no Brasil). "Tivemos um caso de uma uruguaia que atravessou a avenida para fazer compras em Livramento, apanhou o vírus lá e depois viajou até Montevidéu", disse Radi. "Tivemos que trabalhar muito para rastrear todas as interações dela".

A oeste, encaixado entre o Brasil, a Argentina e a Bolívia, fica o Paraguai - um país onde o tereré, a versão gelada do chimarrão, é também uma bebida comunitária. Este país alcançou um sucesso semelhante no controlada pandemia, tendo registado apenas 1.392 casos e 13 mortes até o momento.

O médico Antonio Arbo, epidemiologista e ex-ministro da Saúde, considera que o segredo para o sucesso do Paraguai foram as medidas imediatas e rigorosas do governo, acompanhadas de um bom comportamento da maioria da população. "O encerramento das fronteiras, o distanciamento social e uma fase inicial de confinamento foram bem-sucedidos", diz, citado pelo jornal The Guardian.

O governo do presidente Mario Abdo Benítez foi um dos primeiros na região a implementar medidas de contenção após apenas o segundo caso confirmado de covid-19 a 10 de março. Agora, passou para a fase três de um plano de reabertura em quatro etapas, com a economia muito reativada.

Como no Uruguai, impedir a passagem do vírus do Brasil tem sido uma prioridade. O Paraguai militarizou partes importantes da fronteira e criou centros de quarentena obrigatória para os paraguaios que regressam ao país. Mais da metade dos casos do covid-19 do Paraguai estão relacionados com cidadãos que regressam do Brasil.

Apesar dos resultados invejáveis até agora, as críticas ao governo de Abdo Benítez são fortes, devido a vários escândalos envolvendo o uso indevido de alguns dos fundos designados para lidar com a crise. Foram detetadas várias irregularidades na compra de equipamentos médicos e faltam alguns bens essenciais nas instituições de saúde, como kits de teste, diz Arbo.

O médico Carlos Schaerer considera que, apesar do notável sucesso alcançado pelas autoridades e pela população até agora, o Paraguai está uma posição de vulnerabilidade. "Num contexto em que o altruísmo deve ser a prioridade o e a corrupção deve ser deixada de lado, a corrupção aumentou ainda mais", diz. "Se houver uma explosão da doença, ficaremos impotentes porque não estamos preparados."

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