Os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto sobre violências de que foram vítimas mulheres, escritos por um desembargador que se celebrizou por péssimas razões, devem levar-nos a colocar várias questões sobre o modelo de organização e funcionamento do sistema de justiça. Será que a visão deste juiz sobre o casamento, a família, a vida sexual, o adultério e a violência física entre os membros de um casal, à luz do direito, é um caso isolado ou revela um padrão e, nesta hipótese, em que dimensão?.A resposta a esta questão pressupõe averiguar o que está por detrás desta forma de julgar. Aqueles acórdãos revelam uma metodologia de julgar que se afasta dos princípios inerentes ao Estado de direito, desde logo o princípio da separação de poderes. Diz a nossa Constituição que " os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei". A sujeição à lei é um imperativo para os magistrados e é o corolário da independência de que gozam no exercício das suas funções. Nas suas sentenças, os magistrados devem apreciar os factos com objetividade e de acordo com as provas e aplicar o direito cuja fonte são os órgãos políticos com competência para fazer as leis. Ora, o que aqueles acórdãos mostram é que as conceções próprias dos seus autores prevaleceram sobre a lei, que estabelece a igualdade dos cônjuges e a igualdade entre homens e mulheres. Os juízes consideraram-se acima da lei que lhes competia aplicar e julgaram de acordo com as suas próprias conceções sobre a vida conjugal..E ocorre a pergunta: esta maneira de julgar é assim tão excecional? Gostaria de responder afirmativamente, mas, na verdade, ninguém sabe ao certo..A enorme polémica que o caso desencadeou justifica-se por se tratar de um caso extremo, qualquer pessoa desconhecedora dos temas de justiça percebe a enormidade das afirmações do acórdão que desvaloriza agressões físicas graves a uma mulher com base em comportamento da vítima que os juízes consideraram contrário à sua conceção de moralidade..Digo que ninguém sabe ao certo em que dimensão a subjetividade contamina decisões judiciais porque esse tema nunca foi escrutinado por qualquer entidade independente, desde logo o Conselho Superior da Magistratura, que considera excluído das suas funções apreciar as decisões dos tribunais, dada a sua independência. Viu-se a dificuldade com que o desembargador Neto de Moura foi simplesmente advertido... Entre nós a independência tornou-se um tabu para a total e absoluta falta de escrutínio do sistema judicial, capturado pelo corporativismo..Acredito sinceramente que a esmagadora maioria dos magistrados exerce a sua função de modo exemplar, com integridade e enorme empenhamento, e digo-o com o conhecimento de uma longa prática forense. Mas também vi juízes preconceituosos a sobreporem aos factos e ao direito as suas próprias conceções da vida em sociedade, vi juízes sem os atributos mínimos do julgador; nas palavras de Salgado Zenha, para ser juiz não baste usar a veste de juiz, é preciso ter alma de juiz..O problema é que o sistema não produz seleção nem corrige erros, pela falta de escrutínio independente. E esse problema tem conduzido a uma perda de confiança na justiça, que todos os estudos de opinião revelam e que é de extrema gravidade para a qualidade da nossa democracia..Advogado