No mais lisboetas dos bairros de Lisboa, é por trás do balcão do minimercado que o paquistanês Ali vê Alfama desfilar à sua frente. Shahzad Muhammad recebeu a alcunha de um morador, incapaz de pronunciar o seu nome. Isto foi há cerca de duas décadas, não sabe bem, não é lá muito bom com datas. "Não tenho problema em ser o Ali. Estou feliz com isto", diz, requentando o bordão que usa com frequência, enquanto enfia no saco azul de plástico verduras, frutas, doces, sabonetes, champôs, detergentes, bebidas, umas entre tantas mercadorias que compõem a miríade de produtos a penderem das gôndolas, desafiando os limites da gravidade, com os rótulos coloridos das embalagens a darem forma de mosaico à caótica decoração da loja..Era no minimercado de Ali que fazia as compras quando vivia em Alfama. Um incêndio no prédio onde morava tirou-me da zona, mas sempre que volto sou recebido com mais entusiasmo do que no sítio onde estou, em Alvalade. Numa dessas visitas, Ali chamou-me no canto da loja e, ainda em relação ao incêndio e visivelmente consternado, quis saber se havia conseguido salvar das chamas o dinheiro que mantinha guardado sob o colchão. Uma pergunta que, afinal, dizia mais sobre ele, já que não costumo guardar dinheiro no colchão..A conversa decorre numa ordinária quarta-feira de agosto, entrecortada pelo vai e vem dos clientes. "Tem batata para fritar?", pergunta uma senhora que rompe na loja. Ali não titubeia, aponta algures para o fundo do estabelecimento de 50 metros quadrados. Segundos depois, o saco azul em suas mãos está mais uma vez cheio. "Gosto muito das batatas daqui, ficam rijas ao fritar", elogia ela, fazendo um gesto com a mão como se escrevesse no ar, indicando que Ali registe o valor das compras na conta. Durante a conversa, o mesmo gesto repetiu-se com outros clientes, invariavelmente tratados pelo proprietário como "vizinho" ou "vizinha"..O paquistanês Ali - pronuncia-se mais forte o "A" - mantém inalterada a confiança na clientela. Sabe que o fiado garante a fidelidade dos filhos do bairro, dos poucos remanescentes numa Alfama vítima da recente especulação imobiliária que afugentou os locais para outras paragens. "Mudou muito com os alugueres pela internet", constata, enquanto chama a atenção de outra "vizinha" para voltar no dia seguinte e levar os grelos que encomendou. "Hoje, vinte por cento da população são moradores, o resto é passageiro", diz, maldizendo o aumento dos turistas, dos "passageiros", clientes fugazes e imunes ao canto da sereia do crédito fácil do seu fiado..Antes de chegar a Portugal, Ali viveu em Roterdão, dos 7 aos 18 anos, até se apaixonar por uma emigrante portuguesa. Foi assim que trocou o céu cinza dos Países Baixos pelo azul português. A relação abriu-lhe as portas de uma Alfama ainda de costas viradas para os estrangeiros. "Naquele tempo, não gostavam de forasteiros. Andava-se na rua e ouvia-se um velhote na janela a mandar voltar para a sua terra", conta, constrangido, quase arrependido das memórias. O facto é que quem partiu foi a namorada portuguesa, após o fim do relacionamento. Ali ficou..O comerciante não se arrisca a dizer quando foi que os estrangeiros passaram a ser parte da paisagem do bairro. Ali não se dá bem com as datas, é bom reforçar, característica que talvez tenha herdado da mãe, que na hora de registar o filho baralhou-se com o ano do nascimento. Assim, sabe o dia e o mês que nasceu, não o ano. O documento confere-lhe 45 anos, porém estima ter uma outra idade, entre os tais 45 e 54 ou ainda 55. "Não tem problema. Estou feliz com isto", repete o bordão, gasto como o soalho do mercado, enquanto observa o motorista da carrinha de entregas, estacionada à porta, descarregar as pesadas embalagens de grãos. O esforço é grande e o calor ainda maior. Ao terminar o serviço, o rapaz clama por uma cerveja. Vasculha os bolsos, as moedas tilintam, faltam uns cêntimos, mas Ali não se importa. Com as mãos ágeis de ilusionista, saca o abridor e mata a sede do cliente..Ali pode não se lembrar das datas, mas não esquece os anos da troika, quando o dinheiro diminuiu e aumentaram as pessoas à porta, a pedirem por comida. Foi a hora do estrangeiro estender a mão aos vizinhos que o acolheram. "Dar um pacote de arroz ou duas batatas não deixa ninguém pobre", testemunha. Havia também os que, talvez constrangidos em recorrer ao estrangeiro, preferissem subtrair os produtos das prateleiras. Ali via-os em ação pelas câmaras da loja, mas fechava os olhos, esperava o momento para uma conversa franca, dizer que pedissem caso tivessem fome, melhor do que roubar..Atitudes como essa renderam-lhe o respeito no bairro. Em Alfama, todos conhecem Ali e Ali conhece a todos. Não há nada que se passe sem que não lhe chegue aos ouvidos. Uma atualização diária dos factos, seja pelos moradores mais antigos que aparecem para uma média, pelos pedreiros das obras do alojamento local, sedentos de uma dose de aguardente após o fim do expediente, ou ainda pelos fadistas que aquecem as cordas vocais com um trago de conhaque, antes do ofício numa das tascas da rua. Entre uma compra e outra, há sempre um comentário, a informação sobre alguém que chegou ou partiu para longe, ou para sempre, o adeus confirmado pelas badaladas pesadoras dos sinos da ermida de Nossa Senhora dos Remédios..Era mais ou menos assim há pouco tempo, antes da pandemia. O vírus fechou algumas portas, silenciou o fado, espantou os "passageiros" de Alfama. O desconfinamento ainda não foi capaz de resgatar o cenário de outrora. Aqui e acolá, vê-se um casal de turistas. Aos poucos, um morador mais idoso arrisca-se a sair de casa para trocar umas palavras, a conversa intermediada por máscaras e viseiras. Ali não esconde, ressente-se mais da companhia do que do dinheiro dos clientes..Antes do adeus, um dos dois filhos, o menor, de 10 anos, irrompe pela porta do mercado, paramentado como futebolista. É defesa direito na Voz do Operário. O mais velho, com 16, jogou pelo Oriental e hoje está no Belenenses. Ali é adepto do Benfica. Pergunto se está satisfeito com o retorno de Jorge Jesus à Luz. "Sinceramente, não. Queria vê-lo trabalhar com quem já estava lá. Vencer com uma equipe inteira renovada, até eu", diz, referindo-se ao camião de reforços pedido pelo treinador. "Deste jeito, vai é falir o clube", completa, ciente de que o dinheiro em baixo do colchão não é fácil de se ganhar. Escritor, jornalista e lisboeta vindo de fora