Em entrevista à Lusa, a escritora e jornalista faz questão de frisar que o lançamento do seu livro no Brasil não é normal, porque os tempos que o país sul-americano atravessa também não o são. .Apesar de a obra ter sido publicado em Portugal no final de 2016, e de atravessar 500 anos de história entre Portugal e o Brasil, trata-se de um romance que não perde atualidade, por ter sido a própria atualidade brasileira a levar a autora a querer percorrer locais que têm sido alvo de cortes por parte do Governo brasileiro, liderado por Jair Bolsonaro, como universidades federais, que viram o seu orçamento bloqueado em até 30%, ou terras indígenas, cuja exploração foi defendida pelo chefe de Estado.."Acho que este é o maior desafio de sempre da democracia brasileira. Estes tempos não são normais, e são tempos para tentarmos estar com quem mais precisa. Pensamos nesta digressão para estarmos com as universidades públicas, com as livrarias independentes, com as periferias, com os interiores e com terra indígena", declarou à agência Lusa a escritora portuguesa, referindo ainda uma passagem por uma universidade privada, com grande tradição bolsista..Para a autora e jornalista portuguesa não fazia sentido percorrer vários estados do Brasil para lançar o seu livro sem prestar tributo aos povos que foram "massacrados" no encontro entre os navegadores portugueses e índios brasileiros na época dos "descobrimentos".."Em Minas Gerais vamos fazer uma coisa muito especial, porque era muito importante que a terra indígena aqui estivesse presente. Nós estamos aqui, as duas sentadas, porque em 1500 umas naus chegaram ao Brasil e tiveram um encontro com os indígenas. Para mim era muito difícil encarar esta digressão sem um tributo aos povos indígenas. [...] Vou fazer 500 quilómetros até à terra indígena demarcada dos Krenak, onde está o Ailton Krenak, umas das maiores lideranças indígenas do Brasil, [...] e vamos fazer na Serra do Cipó uma atividade em torno deste livro", revelou à Lusa Alexandra Lucas Coelho, em Brasília..Em "Deus-dará", Lucas Coelho quis dar voz a narrativas que a própria história portuguesa acabou por anular, que são as narrativas de quem resistiu, tanto dos povos indígenas como dos povos africanos, "como um terreiro em que vivos e mortos se podem encontrar", disse..Este romance, com mais de 500 páginas, escritas com diferentes sotaques, e retratado por Alexandra Lucas Coelho como "transatlântico", resulta da experiência de três anos e meio em que a autora viveu na "cidade maravilhosa" do Rio de Janeiro..A escritora quis ser "atravessada" pelo maior território colonizado por Portugal e, dessa vivência, surgiu a história de Lucas, Judite, Zaca, Tristão, Inês, Gabriel e Noé, as sete personagens de "Deus-dará", que percorrem a geografia do Rio de Janeiro, em sete dias ao longo de três anos, num percurso apocalíptico, intensamente marcado pela "herança do domínio colonial escravocrata" que Portugal exerceu no país sul-americano..Aquilo que seria um retrato "horizontal" do presente de milhões de pessoas que viviam ao "Deus-dará", passou também para um plano "vertical", onde a autora quis escavar até ao passado.."Inicialmente a proposta era fazer um retrato do Rio de Janeiro, mas depois eu percebi que tinha de ir de uma linha horizontal, onde temos a ação a decorrer no presente, cronologicamente, para uma linha vertical, onde na verdade fui escavar a história do lugar de onde eu venho, o passado. O livro passa-se nestas duas linhas, onde há uma escavação até antes de 1500, porque me interessava aprender e convocar tudo o que existia aqui antes de as naus terem chegado", frisou.."Quando nós falamos da chegada das naus, e há toda esta retórica em relação ao descobrimento [...], estamos também a falar de um embate entre o velho e novo mundo que simplesmente provocou o extermínio de muitos povos, cujas línguas, culturas e cosmogonias desapareceram para sempre", afirmou a escritora, sublinhando que essa violência continua perpetuada, ainda que sob outras formas..A agenda da autora pelo Brasil inclui encontros em cidades como Campinas, Poços das Caldas, Brasília, Salvador, São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.