Aldeias 65+. Os dias da pandemia a enganar a solidão

Mais de 100 idosos da freguesia de Pombal deixaram de contar com um programa de atividades quinzenal, que os ocupava e combatia a solidão. Com a pandemia, a Junta e a comissão social de freguesia tentam novas formas de aproximação aos que vivem sozinhos
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Piedade Mota ajeita a máscara o que melhor que consegue, por forma a não embaciar os óculos. Está à nossa espera, como se fosse uma visita domingueira: blusa e casaco de malha aconchegados, apesar do sol quente de outubro - porque o que guarda o frio, guarda o calor. "São tão poucas as vezes em que uma pessoa sai de casa e se encontra com alguém, que tem de arranjar, não é assim?", pergunta, em jeito de resposta, contente por rever Raquel e Carolina, as duas técnicas afetas à Junta de Freguesia de Pombal com quem mantém contacto regular. É assim desde março, quando a pandemia a atirou para uma solidão crescente.

É viúva há 12 anos, tem dois filhos e três netos. Metade dessa família vive em França, para onde a filha emigrou há muito. "Este ano nem veio cá, por causa disto do vírus", conta ao DN Piedade Mota, 83 anos, numa alegria incontida por ter alguma companhia naquele dia. Porque os dias são sempre iguais, desde há sete meses. "É como se uma pessoa estivesse na prisão. Vizinhos já não há, e o que antigamente nos ocupava, também deixou de haver". Piedade refere-se ao programa "Aldeias 65+", que a Junta de Pombal dinamiza com a comissão social de freguesia. De 15 em 15 dias, reunia grupos de idosos num espaço público das aldeias e dinamizava com eles diversas atividades. Mas o confinamento e o avanço da pandemia obrigaram ao corte de todo esse rol de ações, deixando mais isolados os que já viviam sós.

Paradoxalmente, não estamos em nenhum lugar perdido no mapa do interior do país. É litoral, a curta distância da cidade e sede de concelho. Mas o cunho rural mostra-se em cada rua das aldeias como esta. Estamos na Charneca, na periferia da cidade, e poucos imaginam que aldeias como esta - aparentemente tão povoada - escondem tantos idosos sozinhos. Ao todo, a autarquia contabilizou 118 pessoas espalhadas pelas aldeias que eram alvo desse programa quinzenalmente.

"Tivemos que reinventar o nosso trabalho. Fazemos visitas domiciliárias porta a porta, esporadicamente, ou contactos telefónicos", conta ao DN Raquel neves, técnica da comissão social de freguesia, que entretanto acabou por criar uma linha de apoio com o objetivo de manter estes idosos debaixo de olho.

Carla Longo, secretária da Junta de Freguesia, percebeu cedo a dimensão do problema. "Logo ao início, uma dessas pessoas disse-me, ao telefone, que se ficasse sem ver os netos preferia morrer. E é muito duro ouvir isso", recorda, ela que nasceu na mesma aldeia da Charneca e sabe de cor as portas onde mora gente sozinha. "Eram pessoas que estavam habituadas a ter aquelas atividades, que ao domingo saiam para ir à missa e sempre falavam com alguém, que ainda circulavam e iam à cidade. A pandemia isolou-as, completamente. Por isso tentamos arranjar forma de nos mantermos sempre em contacto", sublinha.

"Há cinco meses que não saio daqui", revela ao DN Piedade Campos. É o filho quem lhe faz as compras e trata de outros assuntos. "Mas ele também não mora cá, tem uma vida de muito trabalho, não lhe posso pedir mais", afirma. Nos dias em que a saúde permite, Piedade ainda pega na enxada e dedica-se à horta. "É uma maneira de estar entretida. Porque senão uma pessoa passa aqui os dias e até já se aborrece com a televisão - que é, afinal, a única companhia.

As últimas semanas de outubro foram bem exemplo de como os dias e as horas são iguais, para ela e para muitos idosos. Quando mudou a hora, a 24, Piedade não deu por nada. Na manhã seguinte, domingo, ligou a televisão à hora do costume, para assistir à missa. O tempo passava e estranhava a demora. "Só mais tarde me vim a aperceber que afinal a hora tinha mudado. Já viu como é triste não ter ninguém?"

A voz de Carolina Martins já é familiar a muitos destes idosos (a maioria mulheres, viúvas) nos últimos meses. Ingressou na Junta através do programa MARES (Medidas de Apoio ao Reforço dos Equipamentos Sociais e de Saúde) e acompanha Raquel nessa ronda que é preciso fazer pela longa lista de nomes. São ambas muito novas, uma espécie de netas emprestadas para a maioria dos idosos. "Quando ela telefona, conheço-a logo pela voz. E gosto de a ouvir", conta Rosa Ferreira, 86 anos, viúva desde 2009. Nunca teve filhos, mas mantinha um contacto estreito com os sobrinhos, que moram em Almeirim. "Agora, com isto, não têm vido cá".

Rosa "Rufina" (como é conhecida) desloca-se com a ajuda de duas canadianas. Até março passado, nem sequer estava no radar da Junta de Freguesia, nem frequentava os encontros das aldeias 65+. "Ela tinha retaguarda, mas agora também precisa de algum apoio, até para lhe fazermos as compras, ir à farmácia, pagar algumas contas", explica Carolina, sempre impressionada com a capacidade que a idosa ainda revela para limpar e arrumar a casa. Rosa senta-se numa cadeira do alpendre da casa para falar ao DN, onde tudo está milimetricamente organizado. "Às vezes até penso para mim que o que me vale é que tenho mais coragem do que força", revela, enumerando as mazelas que o corpo carrega, com destaque para duas operações com prótese na anca direita. Nada que a impeça de ainda cultivar o quintal, de semear e colher, criar galinhas e coelhos. Poucas vezes sai ao portão para fora, na aldeia do Travasso. Tem vizinhos, mas na mesma frase apressa-se a dizer que "até temos medo uns dos outros, não vá algum passar o bicho ao outro". E por isso descreve com tanta precisão tudo o que fez há pouco mais de uma semana, quando alugou um táxi para ir à cidade (a que ainda chama vila), concretamente a uma consulta presencial no Centro de Saúde. "Quando o meu marido era vivo ele ia sempre comigo. Já tinha carro. Depois, desde que ele faleceu, é como se costuma dizer: fiquei no mato sem cachorro".

A visita da Junta de Freguesia termina com a entrega de duas máscaras sociais, outra das razões que servem de argumento para manter o contacto. "No fundo, nós arranjamos maneira de nos mantermos em contacto com eles [os idosos], para nos certificarmos de que estão bem", sublinha Carla Longo.

Noutro extremo da freguesia, no lugar de Covão da Silva, mora Maria Silva Rodrigues, que é das mais novas do grupo. Tem 71 anos, três filhos e seis netos. Antes da pandemia, tinha uma rotina atarefada: "era eu que andava com os netos para a frente e para trás, que os ia buscar e levar aos treinos". É viúva há 21 anos, mas os últimos meses ganharam a dimensão de uma eternidade. "Acho que o dia mais difícil de todos foi quando o meu neto mais velho fez 19 anos, em pleno confinamento. Isto de uma pessoa não poder estar com eles é muito difícil".

Maria também frequentava o programa Aldeias 65+ "e estava a gostar muito da experiência". Além disso, participava já noutras atividades que a junta organizava para os idosos, como os passeios culturais. De repente, as semanas ficaram sem planos e os dias passaram a ser todos iguais. Dedica-se ao jardim, onde exibe uma vasta coleção de suculentas, e à horta, onde semeia batatas, feijão, de tudo um pouco. E espera que a pandemia a deixe voltar às aulas de informática para seniores, que tanto a entusiasmaram.

A preocupação com os mais velhos e o isolamento a que estão sujeitos não é de agora. Pedro Pimpão, presidente da junta de freguesia de Pombal, enumera um conjunto de projetos que a autarquia tem em marcha, e que vão desde informática para seniores a passeios culturais, até aos encontros entre "avós e netos", entre outros, como o "fado ao Lar", em que um grupo de fados amador vai aos lares e centros de Dia. Ou ia, melhor dizendo. Entre a Junta e a Comissão Social de Freguesia, estavam em marchas diversas atividades que tornavam melhores e sobretudo acompanhados os dias dos idosos. Em março, quando a pandemia se instalou, a autarquia também teve que se reinventar. "A primeira coisa que fizemos foi criar uma linha de apoio - Pombal 65+. Criámos um panfleto e fomos às aldeias entregar. Mas entretanto veio um confinamento obrigatório, e essa distribuição teve de ser feita pela net, tentando sensibilizar os filhos, para alertarem os pais, por forma a mantermos um contacto com as pessoas", conta ao DN Pedro Pimpão. O autarca - que já foi deputado à Assembleia da República, pelo PSD - acredita que é preciso pensar em respostas mais completas para esta população, com o avançar da pandemia e do isolamento. "Se isto se prolongar por muito tempo, as próprias autarquias têm de ir mais além do que agora se faz. Estas redes têm de ser mais efetivas. Nós temos que ter uma radiografia o mais completa possível. E pode ser a própria comunidade a envolver-se no apoio. Mas primeiro tem de saber quais é que são as necessidades", afirma.

"Há pessoas aqui que passam muito tempo sozinhas. Na altura mais agreste, e numa fase em que não havia máscaras, tivemos um conjunto de 100 costureiras que se disponibilizaram a fazer máscaras comunitárias. Fizeram milhares de máscaras, numa altura em que não havia. Também tivemos vários voluntários que foram connosco entregar os cabazes de bens alimentares às pessoas que já estavam referenciadas pela Conferência São Vicente de Paulo, com quem fizemos uma parceria", acrescenta Pedro Pimpão, que insiste na preocupação maior de "não abandonar as pessoas. Isso acho que é muito importante".

Apesar deste não ser um serviço de apoio psicológico, a verdade é que acaba por ter muito essa função. "Há aqui pessoas que têm alguma doença ou familiares com doença grave, e precisam de desabafar e partilhar as preocupações. Neste momento, dentro das equipas que temos - que são pequenas e com recursos escassos, é o que tentamos fazer. É que além de tudo, tentamos também evitar que saiam de casa por causa do risco de contágio".

Piedade, Rosa e Maria não se conhecem. Nenhuma delas admite ter receio do vírus, mas todas são zelosas na prevenção. Mesmo que isso lhes custe a solidão que cresce em milhares de idosos como elas, com a mesma intensidade dos números de ​​​​​​​infeção.

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