Já há muito que o cinema espanhol não tinha ouro num festival grande. Este ano, o lado telúrico e realista de Alcarrás, da catalã Carla Simón, chegou para interromper o jejum. A cineasta de Verão 1993 consagra-se assim de uma vez por todas. Alcarrás é história de uma família num verão na província catalã. Uma história de laços familiares e de práticas agrícolas prestes a serem quebradas. Um olhar sobre o presente e o futuro das nossas sociedades num mundo sempre a mudar em nome da expansão de painéis solares. Obra coral que nesta altura ainda não terá distribuição para Portugal..O júri presidido por M. Night Shyamalan quis ser político nas distinções deste ano, embora tenha havido uma aposta numa diversidade de registos, conforme se pode perceber nos restantes prémios, como o Urso de Prata para Hang Sang-soo, habituée de Berlim, com The Novelist, uma celebração sobre os encontros aleatórios e a importância de sermos sempre verdadeiros. Recorde-se que os anteriores filmes do cineasta coreano vão chegar a Portugal através de uma operação da Midas Filmes. Hang Sang-soo, no seu discurso, prometeu que vai continuar a fazer o seu cinema palavroso. The Novelist é mais uma vez um pretexto para sermos convidados para uma conversa sobre a arte, a vida e os prazeres da bebida a partir de um caso de bloqueio criativo de uma escritora..Relativamente ao Urso de Prata-Prémio do Júri, Robe of Gems, de Natália Lopez Gallardo foi o preferido. Segundo o júri, o filme mereceu a estatueta pela sua audácia. Uma obra mexicana sobre uma família a sofrer com a violência social e masculina em Morelos, local rural do sul do México profundo. Filmado apenas com uma atriz principal, Robe of Gems é outro dos premiados que até agora não encontrou distribuição em Portugal.Em tempos de agenda politicamente correta, os prémios de interpretação não tiveram género, tal como no ano passado. O Urso de melhor interpretação secundária foi para Laura Basuki em Nana, de Kamila Andini. Uma jovem atriz que no discurso de agradecimento disse que o prémio era para o seu país, a Indonésia..Também foi para uma mulher o prémio de melhor interpretação principal, Meltem Kaptan em Rabiye Kurnaz gegen George W. Bush, de Andreas Dresen, filme alemão que conta uma história verdadeira de uma mãe a tentar libertar o seu filho em Guantanamo. Esta atriz alemã de ascendência turca mostrou-se emocionada no discurso de agradecimento, tendo confessado que o mérito é todo do apoio dado pelo marido. O mesmo filme foi ainda distinguido com o Urso de melhor argumento, atribuído à argumentista Laila Stieler.O Urso de Melhor realização foi apresentado pelo jurado brasileiro Karim Ainouz e acabou nas mãos de Claire Denis com o seu perturbante Avec Amour et Acharnement, com uma Juliette Binoche não menos sublime. Para muitos poderia ter sido o Urso de Ouro mais justo. Trata-se de uma história sobre um amor tóxico e destrutivo que vem do passado para comprometer o futuro. Denis, nos agradecimentos, não se esqueceu de mencionar os seus habituais colaboradores na banda sonora, os britânicos Tindersticks. A cineasta francesa tem já rodado o seu próximo projeto, Stars at Noon, com Margaret Qualley..Everything Will Be Ok, de Rithy Phan, recebeu em jeito de consolação o prémio de contribuição artística, enquanto que a menção honrosa foi para A Piece of Sky, de Michael Koch..A federação internacional dos críticos, a Fipresci, deu o prémio de melhor filme a Leonora Addio, do nonagenário Paolo Taviani, mas na secção Fórum o prémio foi para Super Natural, de Jorge Jácome, uma aventura de cinema que cruza uma liberdade experimental com ideias de documentário e de ficção. Uma festa cromática e de mensagem inclusiva filmada na Madeira a partir de uma residência com a companhia Dançando com a Diferença..Trata-se de um prémio importante e justíssimo para um filme que transborda de amor e com um sistema de cinema todo ele arriscado e de uma sofisticada carga sensorial. Para já, ao que o DN apurou, o filme está na forja para ser distribuído nos cinemas pela Portugal Film, devendo poder fazer a sua estreia primeiro no Indie..De recordar que na última Berlinale presencial, A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos, venceu o prémio Fipresci na secção Encontros.