AiWeiwei e o património de que somos feitos

É a primeira vez que uma obra do artista e ativista chinês é exibida em Portugal. Ao seu lado estão outros 20 artistas, de Pedro Cabrita Reis a Anri Sala, reunidos em Todo o Património é Poesia
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Quem diria que a primeira peça de AiWeiwei em Portugal estaria numa sala do Palácio da Inquisição, onde funcionou o Tribunal do Santo Ofício em Évora até ao século XIX?

Num dos pisos superiores do fórum da Fundação Eugénio de Almeida, que ocupa aquele palácio erguido no século XVI, está Stone Pillar, peça de AiWeiwei, ainda coberta por plástico quando chegamos. Na sala ao lado, há um tambor que, como se estivesse animado, vai tocando sozinho. Este é o preâmbulo de uma corrida atrás de Filipa Oliveira, curadora, na montagem de Todo o Património é Poesia, exposição que celebra os 30 anos da cidade de Évora como Património Mundial da UNESCO e que inaugura hoje naquele palácio.

AiWeiwei não foi logo apresentado porque difícil é não ouvir falar deste artista chinês que se fez ativista, e que ora vemos a inaugurar uma enorme exposição em Londres, na Royal Academy of Arts, ora vemos na ilha grega de Lesbos a prestar auxílio e a dar voz aos refugiados que entram na Europa. É o artista dissidente que a China já prendeu, que proibiu de sair do país em 2011, e a quem só devolveu o passaporte no ano passado.

"Isto é um pilar de um templo bastante antigo. O Exército Vermelho [durante a Revolução Cultural na China] destruía imensos templos, imenso património, e a população pegava em bocados de templo e, ou escondia, ou disfarçava. Então ele [Weiwei] pegou num bocado do templo e pintou-o com uma pintura de automóvel dourada. Quando tu disfarças ou pintas, estás a proteger uma coisa, mas estás a destruí-la, ao mesmo tempo", diz a curadora. Stone Pillar é de 2014. "Nós passamos a vida a deixar cair vasos e a partir e destruir património. Passamos a vida a fazer atos tão graves como este, mas só ligamos quando ele os faz e nos provoca." Como nos provocou em Dropping a Han Dynasty Urn (1995) e nos provoca de novo aqui.

Seguimos Filipa Oliveira para a Câmara Municipal. Ainda ao longe, avista-se alguém de samarra. Algo que, ainda que estejamos no Alentejo, e ainda que chova, não é tão comum assim no centro de Évora. É Pedro Cabrita Reis. Vai começar a montagem da sua peça. Entramos no átrio, onde estão as termas romanas. É lá, por entre as escavações, que figurará.

Foi ele que escolheu o sítio para a obra que integra a mostra coletiva de 21 artistas que refletem em torno do património, e que a batuta de Filipa Oliveira juntou. Dos portugueses Francisco Tropa e Mariana Silva à afegã Lida Abdul ou à espanhola Lara Almarcegui, que uma vez mediu o peso da cidade de São Paulo e ali faz o inventário de quantas toneladas de cada material foram precisas para erguer o palácio em que nos encontramos.

"É uma luz florescente", conta Cabrita Reis. "Chama-se Uma luz vinda da terra", diz o artista. "Uma luz na terra", corrige a curadora. "Se calhar passa a ser Uma luz vinda da terra, ou não?" Passa. "A luz pretende impor-se como um pequeníssimo elemento que chama a atenção, necessariamente arrasta um processo de reflexão sobre o que isto é. Isto é uma escavação arqueológica. Essa reflexão é inevitavelmente uma reflexão sobre o tempo", explica.

O património também é futuro

De volta ao fórum, Filipa vai falando ao longo daquelas salas que concebeu. Mas não nos tornemos tão sérios assim - pelo menos, aparentemente. No átrio, há mesas de pingue-pongue, de Rirkrit Tiravanija, onde se lê: O amanhã é a questão. "Não podes pensar o património apenas como passado, tens de pensar no que estás a construir hoje para um futuro", alvitra Filipa. Um recado: haverá raquetes e um torneio de pingue- pongue.

Todo o Património é Poesia não é uma metáfora. A exposição leva obras ao Arquivo, como as histórias da família Eugénio de Almeida recolhidas pela artista Susana Mendes Silva, ou ao muro que rodeia o fórum da Fundação - onde está escrito Everything Is a Story em letras pretas, traçadas pelo artista dinamarquês E.B. Itso.

O que o tambor de que inicialmente se falou toca são, transformados em música, "o nome de um grupo de crianças mortas na guerra Israel-Palestina". A peça é do albanês Anri Sala . "Israel não permitiu que esses nomes fossem ditos na rádio", conta Filipa. Mas "o nosso nome também é património". Então aqueles figuram ali.

As fotografias desapareceram dos álbuns do artista Vasco Araújo, também numa daquelas salas. Ficaram as legendas. Uma delas podia ser: Todo o Património é Poesia.

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