As memórias de António, Afonso, Dulce, Olga e Alberto desfiam-se como um novelo de lã e não podiam contrastar mais com a realidade: onde antes assistiram (e participaram) a um corrupio de centenas de trabalhadores que davam assistência aos navios da Companhia Portuguesa de Pesca (CPP), atracados no cais de Olho de Boi, em Almada, defrontam-se agora com um cenário de abandono e destruição. Da maior empresa portuguesa de pesca longínqua resta apenas isso - memórias e muita saudade. Mas também resta um bairro social aos pés do Tejo, próximo dos pilares da Ponte 25 de Abril, onde ainda vivem cerca de 30 pessoas que não sabem o que o futuro lhes reserva..Desde miúdo que Afonso Guimarães, 73 anos, tem uma espécie de cordão umbilical a ligá-lo ao Olho de Boi: nas férias escolares descia de Almada para o cais para acompanhar o pai trabalhador da CPP, hoje vive numa das 16 casas do bairro. Adorava esses dias quando, ainda criança, entrava nas oficinas e nos navios. Gostava tanto daquilo que aos 14 anos entrou na empresa para trabalhar como carpinteiro de moldes - juntava duas paixões, o desenho e a madeira. E ainda podia sair duas horas antes para ir estudar até ao 9.º ano na Emídio Navarro.."Aprendi aqui uma profissão que só havia no Arsenal do Alfeite ou em grandes empresas", conta com orgulho, olhos marejados de lágrimas por ter aprendido a fazer de tudo um pouco - "tudo o que vê nesta casa fui eu que fiz, móveis, chão, portas e até o tabuleiro de xadrez - e ter acabado a profissão como não desejava. Depois da extinção da empresa, em 1984, trabalhou como encarregado, mas foi ao lançar-se por conta própria que a vida sofreu um revés..Já tinha vivido tempos difíceis quando esteve três anos sem receber na Companhia Portuguesa de Pesca, depois da nacionalização da empresa em 1976 e das convulsões sociais e políticas associadas. Mas o destino ainda lhe reservaria outros problemas: "Comecei a trabalhar para os construtores e eles não me pagavam. Como não queria dar baixa da atividade, fui acumulando dívidas à Segurança Social e acabei por ser penalizado na reforma.".Moradores não pagam renda.A sorte é que não tinha de pagar casa, ainda hoje não paga. Nem Afonso Guimarães nem nenhuma das outras famílias que ainda vivem no bairro, a maioria ex-funcionários, embora já haja situações em que as casas passaram de pais para filhos ou netos..A Companhia Portuguesa de Pesca convidava alguns funcionários para viverem no bairro sem terem de pagar renda, água, luz, telefone - outra das benesses era o aquecimento central. A oferta de habitação, enquanto para quem trabalhasse na empresa, era uma forma de compensar os salários que não eram muito altos.."Davam-nos condições para virmos morar para aqui. Se precisassem de gente a qualquer hora, tínhamos de dar assistência, mas também porque perdíamos o poder de reivindicação. Quando íamos pedir um aumento podíamos receber como resposta que tínhamos uma casa", diz Afonso..Quando a empresa foi extinta, em 1984, quem lá vivia continuou a viver. O complexo de Olho de Boi - estaleiros, oficinas, fábricas e o bairro social - passou, desde a nacionalização em 1976, pela tutela de várias entidades públicas. A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) é a atual proprietária, mas até agora nenhum organismo se preocupou com o bairro ou com os moradores que foram ficando por lá..Quando a degradação rouba a vista.Vivem em casas com vista para o Tejo e para Lisboa de cortar a respiração, mas veem a degradação ganhar terreno todos os dias - os edifícios sem telhados a cair, os rombos na muralha do cais que abrem buracos no caminho dava para a Quinta da Arealva, onde as águas do Tejo já entram. O perigo é real, alertam os moradores, não só para as fundações dos edifícios mas também para os muitos turistas que vêm do Ginjal a pé até ali. A existência de rombos nas muralhas e os enormes buracos no caminho foram comunicados às autoridades, mas, segundo os moradores, a Proteção Civil limitou-se a pôr uma delimitação com arame no caminho. O resto está tudo igual. Como igual continua a escarpa que sobe até ao Seminário de Almada e que não tem proteção..O morro que separa Almada Velha do Olho de Boi também não tem proteção - só existe do lado do Ginjal. E quem mora no bairro ainda se lembra - mais que não seja porque ouviu contar - do dia em que um pedregulho caiu lá de cima e destruiu o clube onde os funcionários da CPP tinham estado a tomar café minutos antes do toque para regressarem ao trabalho.."Esqueceram-se de que mora aqui gente"."A empresa foi à falência por causa de uma série de eventos históricos. O espólio de 22 navios, ferramentas e maquinaria foram vendidos para pagar as dívidas. Foi criada uma comissão liquidatária, pagaram a todos, mas esqueceram-se de que mora aqui gente. Podiam ter pensado numa solução, mas ninguém falou em nada. E quem aqui mora também ficou caladinho." As palavras são de Alberto Quaresma, ator e atual presidente da Comissão de Moradores do Bairro Olho de Boi, onde vive há 50 anos. Ficou com a casa do pai, que foi metalúrgico no estaleiro naval da CCP.. Alberto Quaresma diz que é como se os moradores tivessem uma espada sobre a cabeça, porque não têm qualquer contrato, o que os impede de pedir dinheiro ao banco para fazer obras nas casas.."O que vai acontecer? Não fazemos a mínima ideia, mas quando começarem as obras de recuperação do Ginjal alguma coisa vai acontecer.".Um grande acontecimento foi há cerca de quatro anos quando a EDP cortou a luz ao bairro e os habitantes ficaram duas semanas sem eletricidade. Anteriormente, os moradores depositavam o dinheiro numa conta do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, mas quando a tutela passou para a APA esta entidade entendeu que era ilegal estar a receber o dinheiro..Depois do corte de eletricidade, a APA fez puxadas para cada uma das casas. Existe agora um contador geral, com um contrato de empresa, e por causa disso com a luz mais cara. Os moradores pagam as respetivas contas individuais e a iluminação pública à associação de moradores, que, por sua vez, acerta as contas com a EDP..Alberto Quaresma tem muitas e boas recordações do bairro que agora vê a definhar. Antes de ir morar para o Olho de Boi, aos 11 anos, vivia em Almada Velha. Muitas vezes descia a ladeira íngreme para levar o almoço ao pai e perdia-se naquele mundo. Quando a família recebeu a casa, ficou encantado..Do posto médico à mercearia."Era uma maravilha poder andar por todo o lado. Havia outros miúdos e nas férias de verão fazíamos de tudo, banhos no Tejo, íamos à chincha, a expressão que usávamos para ir roubar fruta às terras da encosta. Chegámos a acampar no morro", conta o ator..Eram outros tempos, quando o complexo dispunha de tudo o que os trabalhadores e os moradores necessitavam: uma peixaria, uma mercearia, um posto de saúde com dois médicos em permanência, um clube... Outros tempos em que o bairro estava um brinquinho, com jardins bem tratados, tudo pintado, caminhos em condições..Agora a degradação começa logo mal se desce a estrada de Almada Velha para o cais. Para o lado direito, fica o Ginjal - também a necessitar urgentemente de obras de intervenção, mas com o jardim junto ao elevador já arranjado. Para o lado direito fica o bairro do Olho de Boi, muito longe da glória do passado. O mote para o abandono é dado pelo pórtico de alvenaria onde se lê "Bairro Social", com as cores esbatidas, o cimento a roubar a cor da tinta. Como se não bastasse, no largo entre a entrada e o Museu Naval acumulam-se sacos de lixo proveniente dos restaurantes trendy à beira-Tejo..Os moradores do Bairro Olho de Boi são responsáveis pela manutenção das casas. E estas habitações, pela proximidade do rio, são bastante húmidas, exigem muita reparação. Mas não têm dinheiro para arranjar o exterior. Consideram, aliás, que essa deveria ser uma tarefa dos proprietários, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA). O DN questionou a APA sobre os planos que tem para o bairro, mas não obteve resposta..Viver sem precisar de sair do cais.Já houve tempos em que a CPP empregava todo o tipo de mão-de-obra para garantir a autossuficiência na reparação dos seus navios que pescavam no Cabo Branco, na Mauritânia. António Carvalho, 72 anos, guia-nos pelo complexo, do bairro ao cais, e ainda se lembra de que naquela zona agora decrépita chegaram a estar mais de uma dezena de embarcações vindas do Cabo Branco, na fronteira entre a Mauritânia e o Sara Ocidental, à espera de serem reparadas..António Carvalho só chegou ao Olho de Boi depois do 25 de Abril, já a empresa estava longe de viver os tempos áureos, para ali trabalhar como responsável pela secção de frio e também para ali morar. Também ele vinha de África, de Angola, onde ficou depois do serviço militar.. É um cicerone orgulhoso, mas não esconde a saudade. Aqui era a fábrica do gelo, aqui a fábrica de redes, aqui a caldeira que "queimava 200 km de gasóleo por dia", ali a mina de água que abastecia o complexo e as casas, ali a cantina, ali o posto médico... "Podíamos viver aqui sem precisar do exterior.".Também é extensiva a lista de profissões que vai desfiando: torneiros, mecânicos, eletricistas, técnicos de eletrónica, soldadores, carpinteiros, caldeireiros de cobre, calafates, fundidores... "Aqui faziam-se desde as hélices às peças de motor, se houvesse um problema nas baterias ou nas bombas injetoras, tínhamos como resolver." Por isso, defende que o complexo poderia ter sido aproveitado para formação profissional..Em 1987, já a Companhia de Pescas tinha sido extinta, o governo de Cavaco Silva aprovou um decreto-lei que considerou o complexo de manifesto interesse público para fins de defesa do ambiente e formação profissional e cultural e a apoio à gestão da bacia do Tejo. Mas nada avançou..Quatro meses sem ali bater o sol.Não são conhecidos os planos da APA para o antigo cais, tão-pouco para o bairro..Enquanto isso, quem lá vive aproveita a melhor vista de Lisboa e o facto de não ter de pagar renda. Dulce, mulher de António Carvalho, adora o sítio onde mora. "A minha mulher é muito vaidosa com a vista, se nos tirarem daqui, acho que morre", diz..Afinal, quem não gostaria de abrir a janela e cheirar a maresia, de ter o Tejo aos pés, a ponte e Lisboa como pano de fundo ou ter o privilégio de assistir todos os dias a um pôr-do-sol maravilhoso?."Não quero sair daqui, mas é uma pena estar tão degradado. Antes as casas eram pintadas todos os anos, era quase uma competição", afirma Dulce, ao mesmo tempo que se lembra de como andava numa correria para levar e ir buscar as filhas à escola e às atividades, lá em cima do morro. "A Renault 4L não parava", lembra o marido..Se a vista encantou Dulce desde o primeiro dia, Olga Guimarães, mulher de Afonso, não ficou nada contente por ir morar para o Olho de Boi. "Isto era um buraco. Já viu, com 33 anos e dois filhos, vir morar para este buraco? Era um suplício vir aqui para baixo. Mas como vivia com a minha mãe numa casa com sete pessoas...", conta, deixando o marido surpreendido com este "segredo"..Olga tem outras queixas: começou agora o período de quatro meses em que não entrará um raio de sol naquela correnteza de casas. "Durante quatro meses, a rua está sempre molhada.".Dulce tem mais sorte: na sua habitação, por ficar mais alta, o sol ainda dá um ar da sua graça durante duas horas diárias, entre o meio-dia e as duas horas..Ainda existirá um raio de esperança para o Olho de Boi?