Regresso ao tema da semana passada, sobre os limites e responsabilidades dos colunistas e jornalistas, não for the sake of argument, pela volúpia de uma polémica de janela a janela - João Miguel Tavares ao parapeito da do Público e na varanda do Governo Sombra, na TV, e eu ao postigo do DN - mas porque se trata de uma matéria crucial no quadro de um debate público sobre o respeito da lealdade democrática..A questão foi suscitada por aquele colunista e comentador televisivo, quando, há pouco mais de uma semana, disparou: "Tenho todo o direito de presumir que Sócrates é culpado daquilo que o acusam - pela simples razão de que as regras do espaço público não são as regras de um tribunal." A tese essencial de João Miguel Tavares é a de que a presunção de inocência vincula os tribunais e que a ele, enquanto cidadão que se move no que chama "espaço público", lhe chegam os indícios que vai colhendo para formular um juízo de valor: pode presumir a culpabilidade de outra pessoa..Contrapus os meus argumentos em duas vertentes: a primeira é que é ilusório falar em presunção de inocência nos tribunais portugueses, tendo em vista as normas repressivas e castigadoras da prisão preventiva e a própria arquitetura humilhante, para o arguido, das salas de audiência e a desigualdade de meios das partes em presença; a segunda é que nada obriga um jornalista, com mais direitos e prerrogativas de investigação do que um cidadão comum, a vincular-se ao silêncio perante um processo judicial em curso: ele pode desencadear a sua própria pesquisa e fazer a prova do que concluir.. Nenhuma destas vertentes interessou a João Miguel Tavares. Do meu comentário sobressaiu-lhe apenas o que considerou um bom resumo que terei feito do seu pensamento. Diz ele que escrevi: "João Miguel Tavares limitou-se a afirmar o princípio de que "tem todo o direito a presumir que fulano é culpado" - mas não passou à prática de afirmar de peito aberto que é mesmo culpado. Ficou-se pela água chilra, quando prometia aguarrás.".Fico contente por me ser reconhecido o mérito a resumir o pensamento de outro mas, infelizmente, não era um resumo, mas uma ironia. O que eu escrevi foi: "Apesar de afirmar que as suas regras são diferentes das dos tribunais, João Miguel Tavares teve a artimanha de rábula do cambão, não fosse o diabo tecê--las e os tribunais reagirem com ferocidade contra quem tão estrenuamente lhes vem defendendo os procedimentos: limitou-se a afirmar o princípio de que "tem todo o direito a presumir que fulano é culpado" - mas não passou à prática de afirmar de peito aberto que é mesmo culpado. Ficou-se pela água chilra, quando prometia aguarrás. Assim fenece a tonitruante e patusca teoria da irresponsabilidade dos colunistas. Pudera!".Ficaria agora na embaraçosa posição do contador de uma anedota que a tem de explicar a seguir. Mas estou certo de que os meus leitores captam perfeitamente a diferença entre o suposto resumo e a efetiva picadela irónica..João Miguel Tavares insiste: "(...) eu não me outorgo o direito de dizer que fulano é culpado quando não tenho provas disso, mas outorgo-me todo o direito de presumir que fulano é culpado, ou de achar que ele é culpado, se considerar ter suficientes indícios para tal.".Mais um jogo de palavras: quem presume, guarda para si; aliás, todos nós, sobre todas as coisas, fazemos presunções - mas o mais que nos permitimos é manifestá-las prudentemente e sob reserva a um círculo de pessoas de confiança, não do alto de um púlpito sobranceiro ao "espaço público". Repare-se: mesmo o juiz, quando lavra uma sentença, depois de um longo processo, não afirma nada de ciência segura e rigorosa - nem poderia; ele presume estar certo na decisão, em função do que pôde coligir, inferir e deduzir. Não é uma presunção à toa: está sustentada em factos, testemunhos, documentos e configurações da lei. E tudo aquilo que não tenha esta sustentação é, ou deveria ser, irrelevante para a sentença. Pode até dar-se o caso de o juiz ter a certeza, certezinha, de que alguém é culpado. Mas não tem provas para condenar, pelo que o manda em paz. Porquê? Porque não tem o direito a estigmatizar a honorabilidade de alguém sem estar devidamente respaldado em comprovativos. .Então um juiz, que cavou mais fundo com o bisturi da procura da verdade do que todos os outros, silencia-se - e chega alguém ao cimo de um caixote de sabão no Hyde Park da sua aldeia global e tromboniza culpas e suspeições que não consegue provar? Questiono a legitimidade desse alguém estar um degrau acima dos outros a debitar a sua opinião. Como chegou lá? Foi um tio de uma prima de um cunhado que tinha um caixote de sabão a mais? Ou foi porque ganhou o respeito dos outros, que o querem ouvir, porque sabe manter-se dentro das baias da lealdade democrática, ou seja, da ética civil?. João Miguel Tavares diz que quer "apenas contribuir modestamente para um debate aberto no espaço público, sem as hipocrisias do costume, nem as premissas que vestem o casaco de um suposto civismo ("então a presunção de inocência não é um princípio tão bonito?") para, na verdade, esconderem a trágica amálgama entre os campos político e judicial. Amálgama essa, já agora, que José Sócrates sempre utilizou habilmente, e que lhe permitiu a sua reeleição em 2009 apesar da longuíssima cauda de casos mal explicados - se nenhum tribunal o tinha acusado de nada, então nada havia a explicar, não é?".Em primeiro lugar: eu gostaria muito de contribuir para um debate aberto no "espaço público" sobre física de partículas. Para isso, teria de fazer duas coisas: escolher pessoas que sabem do que estão a falar, porque estudaram - e não as suas empregadas domésticas que estão fartas de tirar umas por outras dessa "física particular" de tanto servirem jantares aos senhores doutores que lá vão a casa; e pedir-lhes que, tanto quanto possível, falem de maneira que eu perceba para mais adequadamente poder, como jornalista, retransmitir ao público. Ou, em alternativa, aventuro-me a estudar a fundo a física de partículas e reapareço em 2037....Em segundo lugar: toda a gente fez os seus juízos de valor e teve as suas presunções na hora de votar em 2009. E as pessoas votaram como votaram: umas por isto, outras por aquilo, todas porque sim. O que pesou na decisão? Tudo e mais alguma coisa, incluindo a quase apoplexia de escabeche da véspera. João Miguel Tavares não perdoa aos seus concidadãos não terem visto tão longe como ele, que estava em cima do caixote de sabão e tinha mais alcance visual. Paciência. Mas não foi por nenhuma amálgama do político judicial. Todas as evidências mostram o contrário: até políticos condenados ganham eleições..E pensa João Miguel Tavares que, se e quando este processo transitar em julgado, as pessoas passam a votar como deseja? Se ele é dado a este rilhar de dentes pela incompreensão dos seus concidadãos em relação à certeza das suas presunções indiciárias, creio que ainda o verei a escaqueirar o caixote de sabão e fazê-lo arder numa fogueira de São João... Miguel Tavares - se me puderem perdoar a brincadeira..Nota: Não poderei publicar o artigo para a coluna do provedor no próximo sábado, dia 13. Reencontramo-nos no dia 20, ainda antes das festas. (O.M.)