Os países ocidentais que não procurem a vingança. Caso contrário, que incentivo a Rússia e os seus líderes terão para cessar as hostilidades, se souberem que a sua retirada os levará à ruína certa?".Esta frase talvez seja a reflexão mais objetiva no discurso que o califa Hazrat Masroor, líder da Comunidade Islâmica Ahmadia, proferiu durante o 17.º Simpósio Nacional Pela Paz. Não deixou, contudo, de condenar a invasão da Ucrânia pelos russos, mas prudentemente reforçou o conselho: "É importante manter abertos os canais de comunicação com o Kremlin"..O DN esteve em Londres, no Reino Unido, onde vive a maior Comunidade Ahmadia da Europa, para assistir ao 17.º Simpósio Nacional Pela Paz, realizado na Mesquita Baitul Futuh em Morden, que contou com a presença de cerca de 1500 pessoas. No mesmo dia foi inaugurada pela segunda vez aquela que é a maior Mesquita no continente europeu da comunidade Ahmadia, já que em 2015 o complexo religioso sofreu um violento incêndio que destruiu parte do edifício. Sem indícios de mão criminosa, de imediato se iniciou a sua recuperação, aproveitando para alargar o edifício, modernizando a fachada, entre outros significativos melhoramentos que justificaram uma reinauguração, oito anos e perto de 25 milhões de euros depois, com todos os cêntimos a serem fruto de doações, com o quinto califa a descerrar a lápide comemorativa. Hazrat Mirza Masroor Ahmad é filho, bisneto, bisneto e trineto dos quatro califas que o antecederam, todos continuadores do legado iniciado pelo Messias Prometido Hazrat Mirza Ghulam Ahmad. Apesar da coincidência, a liderança dos Ahmadia não constitui uma dinastia e qualquer fiel pode ambicionar ser califa..O primeiro contacto com a comunidade deu-se logo à chegada, no aeroporto de Gatwick. Abdul Wahab, o motorista que nos transportou para o local onde iria ocorrer o evento em Morden, aproveitou a viagem para nos falar da sua vida de migrante ganês no Reino Unido. É aliás no Gana que existe a maior comunidade Ahmadia fora do Paquistão, que tem igualmente uma grande adesão por todo o continente africano, sobretudo na Nigéria, Guiné-Bissau, Serra Leoa e Burkina Faso. Abdul meteu uns dias de férias para estar como voluntário à disposição da comunidade. Calhou-lhe conduzir os convidados, mas também pode ser chamado para cuidar da limpeza ou para servir às mesas durante o evento..Chegados ao complexo religioso Baitul Futuh, deparamo-nos, para além de uma organização exemplar, com um ambiente fraterno e muito cordial. Pouco antes do jantar, o discurso final do 17.º Simpósio Nacional Pela Paz foi aproveitado pelo líder muçulmano para pedir aos líderes mundiais para usarem boa fé no plano de paz para terminar o conflito na Ucrânia. Na presença de mais de 1500 pessoas, incluindo 500 dignitários, fieis vindos de vários pontos globo e convidados de 40 países, embaixadores, ministros e membros do parlamento inglês, afirmou: "Sinto apenas dor e angústia ao ver o mundo a avançar rapidamente para uma terrível guerra mundial," e continuando a apontar caminhos que considera fundamentais para se atingir a paz, acrescentou: "As potências mundiais que auxiliam a defesa ucraniana devem também fazer todos os esforços possíveis para acabar com a guerra por meio de negociações de paz, quaisquer que sejam os erros cometidos pelo Estado russo devemos ter em mente o quadro mais amplo de que se a guerra não acabar, levará a uma crise global cada vez mais profunda. ".Não deixou também de aludir ao Alcorão, num claro separar de águas em relação aos fundamentalistas islâmicos, já que os Ahmadia proclamam que Islão é uma religião que promove a paz: "O sagrado Alcorão instruiu que todas as oportunidades possíveis para alcançar a paz devem ser perseguidas, não importa quão remotas sejam as possibilidades de sucesso"..A comunidade Ahmadi é um movimento religioso muçulmano fundado no final do século XIX, no Punjab, na então Índia britânica, por Mirza Ghulam Ahmad. Embora presentes em mais de 200 países, com cerca de 16 mil mesquitas erigidas, são uma minoria perseguida em muitos países muçulmanos, sobretudo no Paquistão, onde estão em permanente risco de vida, já que os assassinatos são uma constante, perante a indiferença das autoridades..Com a independência do Paquistão em 1947, Muhammad Ali Jinnah prometeu liberdade religiosa para todos, mas com a sua morte, um ano depois, a promessa acabou por cair por terra. Começaram então as perseguições aos Ahmadi, com a constituição paquistanesa a incluir uma serie de restrições feitas exclusivamente para esta comunidade, acabando os Ahmadi por ser considerados não muçulmanos pelo parlamento em 1974, e em 1984 legalmente impedidos de se identificarem como muçulmanos. Para poderem votar, são obrigados a preencher um formulário em que renegam a sua religião, facto que os leva a recusar o direito de voto. Os próprios passaportes têm a menção da sua religião, não podendo aceder a cargos militares ou políticos. A discriminação levou a que o quarto califa fosse forçado a abandonar o país, acabando por se exilar em Inglaterra onde já residiam muitos fiéis e existia uma pequena mesquita, construída em 1924..Proibidos de se autoproclamarem muçulmanos no Paquistão, os Ahmadi cumprem religiosamente os mandamentos do Alcorão. Assumem-se como zelosos cumpridores da lei e afirmam que a Paz é o único caminho possível para a humanidade e que só através dela é possível criar uma sociedade harmoniosa para todos, independentemente da nacionalidade, etnia ou crença. A principal diferença para as outras correntes muçulmanas é que acreditam que Jesus Cristo saiu vivo da Cruz e que foi viver para Caxemira onde morreu com 120 anos, e que Mirza Ahmad é o Messias Prometido, facto que as restantes comunidades muçulmanas consideram heresia..Outro dos momentos altos do Simpósio Pela Paz é a entrega do Prémio Muçulmano Ahmadia, para quem promova, fomente ou faça importantes avanços para a paz. O galardoado com o prémio de 2022, o japonês Tadatoshi Akiba, viu reconhecido o seu esforço na campanha pelo desarmamento nuclear. Tadatoshi, que foi mayor de Hiroshima, no discurso de aceitação relembrou: "Logo em agosto de 1945 o então segundo califa dos Ahmadia foi um dos primeiros no mundo a reconhecer e protestar contra o uso das armas nucleares", tendo ainda alertado para as consequências causadas pela bomba nuclear na cidade que governou entre 1999 a 2011, reforçando: "Vivemos o perigo real de uma guerra nuclear que é algo que não pode voltar a acontecer", enquanto mostrava aos presentes uma imagem da devastação, relembrando a reportagem efetuada pelo americano John Hersey para o New York Times que mais tarde resultou na obra intitulada Hiroshima..Barbara Hoffmann, fundadora da Instituição de Caridade ASEM foi também distinguida com o Prémio Muçulmano Ahmadia do Fomento pela Paz em 2019 que, devido à pandemia, só agora foi entregue. A distinção foi atribuída em reconhecimento pelo seu trabalho humanitário junto das crianças órfãs vítimas da guerra em Moçambique: "Estou muito feliz em compartilhar este prémio com todas as pessoas que comigo colaboram, nada fiz sozinha, tudo o que fizemos, fizemos juntos ", disse..No dia seguinte à cerimónia formal, a comitiva portuguesa foi recebida em audiência pelo quinto califa, em Tilford, Surrey. Numa antiga quinta onde chegou a funcionar uma escola pecuária foi construída uma mesquita e um bloco habitacional para albergar elementos da direção. Além de ali ter a sua habitação permanente, é também nestas instalações que funciona o canal televisivo que permite o contacto com os fiéis espalhados por todo o mundo. No complexo também funciona o seu gabinete, onde a comitiva portuguesa foi recebida. Depois de passarmos pela segurança que usa equipamento idêntico àquele que se encontra nos aeroportos e de fazermos um teste covid, fomos finalmente recebidos pelo califa. Após os cumprimentos da praxe, com indisfarçável curiosidade pediu-nos para retirar as máscaras e que cada um de nós se apresentasse. Aproveitamos a oportunidade para lhe perguntar se planeava visitar o nosso país, ao que nos respondeu: "Quero visitar Portugal, esperando que em breve possa ir ao vosso país"..No final do encontro tivemos ainda a oportunidade de visitar outro local de culto, a mesquita Mubarak, exclusiva do empreendimento e inaugurada em 2019. Na saída das instalações despertou-nos curiosidade a presença de duas campas, lado a lado e ambas pintadas de branco, com inscrições em árabe, que soubemos pertencerem ao quarto califa e à sua mulher, os primeiros a serem sepultados em solo britânico..O presidente da associação Ahmadia em Portugal, o missionário Fazal Ahmad, contou à reportagem do DN que a comunidade portuguesa foi fundada em 1987 e entre os três fundadores estava uma mulher, a pintora e atriz brasileira Edelweiss Almeida Dias, que no início dos anos 60 se converteu ao islamismo, mudando o nome para Amina e indo viver para Inglaterra. Em Portugal, para além de ter fundado a associação, ajudou a traduzir o Alcorão para português..Fazal Hamal é o terceiro presidente da comunidade residente no nosso país, que está concentrada na grande Lisboa, onde contam com cerca de 500 membros. Reúnem-se uma vez por semana num armazém na Pontinha: "Todas as sextas-feiras reunimos perto de 50 fiéis, noutras ocasiões chegámos aos 100 fiéis, o que esgota a capacidade do armazém. Se tivéssemos a nossa mesquita poderíamos receber muitos mais". Por isso procuram um terreno onde possam edificar um local de culto.."Temos fundos próprios e contamos com a ajuda da Ahmadia Internacional", segundo o líder da comunidade portuguesa, a maior dificuldade poderá estar em conseguir a aprovação do projeto para a edificação da mesquita: "Ainda estamos trabalhar nisso, mas planeamos construir em Loures ou Odivelas, ou noutro concelho perto de Lisboa"..dnot@dn.pt