Aharon Halevi e os incêndios de 2017

Publicado a
Atualizado a

Em junho de 2017 mais de sessenta pessoas perderam a vida nos incêndios de Pedrógão Grande e ninguém acreditou ser possível que uma tragédia semelhante voltasse a ocorrer escassos quatro meses depois. No entanto, o fogo da morte faria mais cinquenta vítimas, entre elas o único morador da pacata Quinta do Pisão em Oliveira do Hospital: Aharon Ben-Zion Halevi.

Alvo de uma homenagem, em fevereiro de 2019, na Sinagoga Kadoorie, no Porto, por parte de chefes-rabinos de todos os continentes, Halevi tem uma história que merece ser contada. Jurista de nomeada em Londres, desistiu da profissão e mudou-se para um lugar remoto no deserto egípcio para escrever o seu primeiro romance, Blood of Kings, que haveria de tornar-se um best-seller de ficção histórica.

Naquele tão isolado lugar do Egito, perto da Líbia, a segurança física do jovem escritor esteve muitas vezes em risco. Uma noite, viu-se atacado por uma cobra venenosa e foi salvo no último momento por um gato selvagem que costumava alimentar. Halevi ficou muito agradecido ao amigo felino e acabou por adotar o animal e a companheira deste.
Após a revolução egípcia que derrubou o regime do presidente Hosni Mubarak, as recém empossadas autoridades suspeitaram que aquele estranho inglês, com o nome civil Andrew Smiler, era na realidade um judeu e um espião potencial. O seu visto foi revogado. Foram concedidos poucos dias para que ele deixasse o país, o que fez juntamente com os gatos que conhecera no deserto.

Halevi mudou-se para uma residência rural numa área verdejante de Portugal, que oferecia o ambiente e a inspiração propícias para continuar imerso no seu trabalho literário. O silêncio da pequena cave de sua casa permitiu que escrevesse textos de grande profundidade intelectual e sentimental, que ele foi partilhando com amigos do mundo inteiro através da internet e do pequeno posto de correios local.

De poucas falas e muitos cuidados sanitários, o que nunca lhe valeu um grande número de amigos, Aharon Halevi temia pela saúde dos seus animais, que haviam mudado radicalmente de habitat natural e de alimentação e que poderiam contrair doenças para as quais não estavam imunes. Também os caçadores constituíam um perigo para os gatos pelos quais o discreto judeu se sentia responsável.

Na manhã de 15 de outubro de 2017, a mãe de Halevi telefonou ao filho dizendo-se muito preocupada com os incêndios florestais que se alastravam no centro de Portugal. Ele descansou-a: as autoridades portuguesas diziam ter a situação controlada. O desastre de Pedrógão Grande, ocorrido em junho daquele ano, certamente havia posto o Estado em alerta e não era acreditável que algo parecido voltasse a suceder.

Sozinho na região, sem rede de apoio e sem automóvel, Aharon Ben-Zion Halevi foi encontrado, no dia seguinte, carbonizado, perto da sua residência. Não tinha tido tempo de fugir. Confiou nos homens e perdeu. Levava junto do coração as caixas de transporte dos seus gatos selvagens, que tragicamente também pereceram.


Presidente da Comunidade Judaica do Porto

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt