A aguardente é uma das bebidas mais patrimoniais dos portugueses, entendida e aceite geralmente como digestivo. Por isso mesmo, o seu lugar à mesa acontece com pompa e circunstância quando a empreitada da refeição chega ao fim, para dar as boas vindas a um charuto, bombom ou pedaço de queijo. Espécie de ritual contemplativo que tem a grande virtude de ser também um auxiliar poderoso da digestão. Aprendi relativamente cedo a gostar de aguardente e gostava que isso tivesse acontecido mais cedo, por uma razão muito simples; aliás dupla razão: perder o medo e destruir o mito absurdo que existe em relação às bebidas duras..Toda a bebida é boa quando não se vai para além da moderação e do auto-controlo, e o primeiro corolário desta verdade insofismável é que somos nós e não a bebida que decidimos como vai ser. É justamente isso que sempre achei que quando mais cedo aprendêssemos melhor caminho faríamos e consequentemente mais prazer aprenderíamos a ter com a aguardente..Mas vamos sempre a tempo da redescoberta, há mesmo um mundo inteiramente novo que se oferece a quem ousa sondar o desconhecido, ou o menos visitado. são fascinantes as metamorfoses de uma aguardente gelada no contacto com a comida e se não tiver um abatedor de temperatura utilize um cubo grande de gelo para a refrigerar rapidamente. Não guarde nunca a aguardente no frigorífico, vai "queimar" a bebida e mais tarde ou mais cedo desvirtuá-la totalmente. E por favor nunca consuma a aguardente "on the rocks", o efeito é o mesmo a que assistimos no whisky e provoca a ruína de uma bebida que demorou anos a fazer e aprimorar..Colocando-a perto dos 5ºC, experimente foie gras mi-cuit ou até mesmo fresco salteado em manteiga com as habituais tostas e vai dar-se conta da grande capacidade de resolução de gorduras e proteínas da aguardente da sua preferência. A combinação blinis, limão e caviar, um dos standards do champanhe, é ainda mais feliz no encontro com a aguardente gelada. Se a trouxer para os 18ºC, vai adorar a facilidade com que entra em peixes fumados, vieiras e cogumelos frescos. E se passar a uma aguardente reserva, com vários anos de envelhecimento em cascos de madeira, vai abismar com a ligação com ostras ao natural, por exemplo!.De repente tudo o que conhecemos e sabemos ganha outra vida. Quem souber trabalhar uma boa aguardente como ingrediente de um cocktail tem o poder de transformar o mundo, pois além do domínio dos vectores principais da bebida, cria uma coroa de muitos outros, capazes de harmonizações praticamente sem limites..O restaurante Sauvage, em Lisboa, deu um passo particularmente inspirado, com a criação de um prato harmonizado com um cocktail baseado na mítica e histórica aguardente CR&F Reserva. O Cocktail tem o sugestivo nome de Tradição e foi criado pelo genial bartender Renato Carmo, em conspiração sempre feliz com o chef Rui Abreu. Tonalidades cítricas, toques tropicais, o cocktail é servido com uma bola grande de gelo dentro e é assim que se garante a temperatura ideal de consumo por mais tempo, sem os riscos da diluição que os vezeiros cubos de gelo aportariam..É grande a bondade da ligação do filete de robalo com arroz cremoso à Bulhão Pato, espuma de limão e coentros. De repente, estamos no rooftop do Olimpo a concluir que uma grande aguardente como esta é mesmo uma porta do céu. O robalo vem com a pele crocante e suculenta entregando alguma gordura ao cocktail, que a resolve sem problemas, criando cremosidade no palato. Logo se gera simpatia de texturas com o arroz cremoso - deixem-me dizer risoto - e cria um edifício glorioso em torno da inefável declinação do fundo Bulhão Pato que as santas mãos do chef Abreu produzem. De repente, estamos à mesa com um cocktail Tradição e um senhor robalo como se fosse a coisa mais natural do mundo. E não é?.Cocktail Tradição -9 euros.Filete de robalo com arroz cremoso à Bulhão Pato, espuma de limão e coentros - 17,50 euros.Onde encontrar:.Sauvage Restaurante Bar.Av. António Serpa 9, 1050-053 Lisboa.Tel. 211 345 998.12:00-15:30; 19:00-22:30.Não fecha