Facto ou mito, segundo Heródoto, no ano 539 a.C. Ciro invade a Babilónia ao desviar o Eufrates e comandar as tropas ao longo do leito seco do rio. A água tem sido um elemento constante nos conflitos na região, seja como arma, seja como vítima, seja como causa. O mais recente: em setembro de 2018, os cidadãos de Baçorá, no sul do Iraque, revoltam-se contra a contaminação da água potável, que levou à hospitalização de 30 mil pessoas. Dos protestos resultam 15 mortos e dezenas de feridos.."O Médio Oriente é um caso em que a água também tem sido utilizada como arma. É um caso extremo", diz Francisco Nunes Correia. O professor catedrático de Recursos Hídricos do Instituto Superior Técnico lembra o caso da guerra entre o Iraque e o Irão, na qual Teerão procurou atingir as fontes de água do Iraque para o debilitar. "A água é tão essencial, sobretudo em zonas áridas ou semiáridas, que se torna um alvo militar fácil e que causa problemas quase insuperáveis."."É uma região com populações em crescimento muito rápido, e por isso os limitados recursos hídricos estão sob pressão crescente, e infelizmente é uma região onde vemos o risco de as alterações climáticas serem particularmente graves, onde já vemos temperaturas a aumentar, onde já vemos alterações nos padrões de precipitação e no caudal dos rios, e todos estes fatores. Os problemas ideológicos existentes e o aumento das populações, a escassez de água e a ameaça das alterações climáticas vão agravar, e não melhorar, as tensões sobre a água nos próximos anos", considera o cientista Peter Gleick em entrevista ao Circle of Blue..Arma, alvo e catalisador.Mas não é só no Médio Oriente. Ao longo da história, em todo o mundo, a água tem sido um fator catalisador da violência: os recursos hídricos e os sistemas de abastecimento de água têm sido usados como armas; e as infraestruturas hídricas como alvos ou vítimas de conflitos. O primeiro caso é o mais claramente relacionado com a escassez de água e a disputa pela obtenção de recursos. Quando a água é escassa, ou o acesso à água é limitado por razões políticas ou ideológicas, podem surgir conflitos. O segundo é o que de mais parecido pode haver com uma arma de destruição maciça: desviar o curso de rios, envenenar poços ou abrir diques pode levar à morte de centenas de milhares, como aconteceu, por exemplo, em 1642, no rio Amarelo, na guerra entre os manchus e a dinastia Ming. Por fim, o terceiro caso pôde ser visto recentemente na Síria e no Iémen, quando os sistemas de abastecimento de água foram alvo de ataques..Um projeto do Pacific Institute, organização fundada por Gleick, compilou a história da violência relacionada com a água na sua base de dados numa cronologia do conflito da água. A base de dados tem mais de 600 entradas e inclui exemplos de todas as regiões do mundo..Explica o cientista e comunicador que reduzir os riscos de violência sobre a água requer a compreensão das suas causas para de seguida se reduzir os fatores que contribuem para os conflitos. "A escassez absoluta de água não é normalmente o problema; em vez disso, é a má distribuição de água ou de infraestruturas hídricas, combinada com direitos legais incertos ou conflituosos à água, que mais contribui para as tensões que surgem sobre o acesso à água. Quando essas tensões são exacerbadas pela falta de instituições ou mecanismos de governação eficazes para gerir e distribuir a água, é mais provável que se verifique violência", explica..Nadamos ou afundamo-nos."Todas as nações têm interesse em enfrentar este desafio global; quando se trata de segurança hídrica, afundamo-nos ou nadamos juntos", escreveu David Reed, conselheiro do World Wildlife Fund e autor do livro Water, Security and U.S. Foreign Policy. Porém, o cenário de afogamento coletivo está mais próximo do que o de flutuamento. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU visam proporcionar a toda a população mundial água e saneamento até 2030. No entanto, em 2017, um relatório da Organização Mundial da Saúde e da UNICEF estimava que mais de 2,1 mil milhões e pessoas não têm água em casa. O número mais do que duplica quando se fala de saneamento: 4,5 mil milhões não tinham saneamento..Um exemplo preocupante quanto à má gestão dos recursos hídricos (e de potencial conflito com o país vizinho) é o Paquistão. É o país com a quarta maior taxa de utilização de água no mundo. A quantidade de água, em metros cúbicos, usada por unidade do PIB, é a mais alta do mundo, ou seja, nenhum país tem uma utilização tão intensiva de água como o Paquistão. O país está dependente da água da bacia do rio Indo. O Conselho de Investigação de Recursos Hídricos do Paquistão (PCRWR, na sigla em inglês) previu, num relatório publicado em 2017, que o país pode atingir a "absoluta escassez" do nível de água em 2025..Na quinta-feira, o governo da Índia anunciou que ia deixar de partilhar a água do rio Indo com o Paquistão, de acordo com o Tratado sobre as Águas do Indo, confirmou o ministro dos Transportes e da Água, Nitin Gadkari. Num tuíte, o governante indiano escreveu: "O nosso governo decidiu deixar de partilhar água para abastecer o Paquistão." A Índia irá desviar água de rios mais a leste para abastecer as suas populações nos estados de Jammu, Caxemira e Punjab..Por um lado, a utilização de cerca de 95% da água na agricultura (que tem baixa produtividade), por outro o aumento acelerado da população (já passou a barreira dos 200 milhões) combinam desafios a que o governo tem de responder com a máxima urgência. "O Paquistão não construiu barragens desde a década de 1960. Podemos armazenar água por apenas 30 dias, é preocupante", diz à Deutsche Welle Irfan Choudhry, especialista do setor da energia.."A água é definitivamente fonte de conflitos, embora seja também fonte de cooperação, e as duas coisas estão relacionadas. As partes em conflito tendem a aproximar-se e a fazer acordos e protocolos. Há muitos níveis em que a questão pode ser suscitada. Desde o nível mais elementar - agricultura, indústria, abastecimento, infraestruturas para controlo de cheias, turismo -, tudo depende em muita medida e de formas diferentes da água. Muitas vezes essas utilizações da água são conflituosas entre si", comenta Nunes Correia..O caso ibérico.Mas depois há outro nível, o da tensão entre regiões ou Estados, como é o caso na Península Ibérica. "É uma área que concita à cooperação e ao desenvolvimento, à criação de estratégias comuns e a uma atitude de partilha. Por ter um grande potencial de conflito, o melhor é termos acordos e convenções", diz o ex-ministro do Ambiente..Nunes Correia recorda que Portugal e Espanha têm sete acordos assinados desde 1864, e cujo capítulo mais recente foi o protocolo adicional à convenção de Albufeira, de 2008. "O caso de Portugal e Espanha é um exemplo de conflito, mas também de cooperação e com dimensões regionais. A relação é estruturalmente desequilibrada e a lei da gravidade joga contra nós. Toda a água de Espanha, suja ou limpa, muita ou pouca, corre para Portugal, e tudo o que se faz em Portugal afeta muito pouco Espanha, exceto no Guadiana.".O especialista em hidrologia e recursos hídricos afirma que Portugal tem de se manter vigilante. "Mal de Portugal se se distrai. A Espanha causa danos a Portugal sem intenção, diria quase sem dar por isso. Ou Portugal mantém muita atenção ao que a Espanha nos faz e envia em quantidade e em qualidade, ou muito rapidamente os rios chegam secos, devido às grandes pressões internas, aos grandes desequilíbrios hídricos regionais.".E para quem possa achar que se trata de uma visão alarmista, Nunes Correia recorda o que aconteceu nos anos 1990. Nessa década, Madrid aprovou um novo plano hidrológico que desviava água do Douro para o Tejo e do Tejo mais para sul "sem ter passado cartão a Portugal", apesar de haver estruturas de contacto permanentes. À época, o engenheiro civil fez parte da delegação que se dirigiu à capital espanhola para afirmar que o plano era inaceitável. "A resposta deles é que não tinham pensado nas consequências para Portugal. Foram de imediato fazer um estudo sobre as consequências e emendaram a mão."