Nem todas as grandes revoluções da história se fizeram com armas, adornadas ou não por cravos. Os processos mais transformadores da vida humana, com real impacto no quotidiano de milhões de pessoas, raramente nasceram da visão estratégica de um militar ou da vontade política de alguém, mas, sim, do engenho para resolver um problema ou responder a um desafio. Iniciaram-se com uma semente lançada à terra, um chip ou um comprimido. Mas por causa deles o mundo não voltaria a ser o mesmo..Agrícola."A mãe de todas as revoluções" é como o arqueólogo francês Jean-Paul Demoule se refere ao Neolítico no livro Os Dez Milénios Esquecidos Que Fizeram a História. Quando Inventámos a Agricultura, a Guerra e os Chefes (edição da Fayard, 2017). Dela decorreram, de forma gradual mas decisiva, as primeiras grandes concentrações populacionais, a criação de uma hierarquia organizacional, a divisão social do trabalho e, finalmente, a escrita. Mas também a luta pelo território e pelo poder..Há cerca de dez mil anos, a humanidade quis deixar de depender do acaso. Os caçadores recoletores que percorriam planícies e estepes, ao ritmo das estações, tornaram-se agricultores que foram domando a natureza com um conjunto de técnicas e instrumentos, transmitido de geração em geração. Em simultâneo construíram-se as primeiras casas e domesticaram-se animais, passando, pois, a agricultura a estar associada à pecuária..Mal conhecido, o Neolítico (que, na realidade, se prolongou durante mais de 5000 anos) suscita hoje uma série de questões a arqueólogos e historiadores, nomeadamente quanto à enorme "pegada ecológica" desta revolução. Tradicionalmente dizem-nos que as primeiras comunidades a viver da agricultura e do pastoreio surgiram na região do Crescente Fértil, na vasta área situada entre o Nilo e os rios Tigre e Eufrates. Ali, pequenos núcleos familiares teriam formado tribos e clãs, lideradas por um patriarca, a quem competia a proteção da aldeia contra o possível ataque de outros povos. No entanto, hoje há quem considere a possibilidade de, a par do Crescente Fértil, terem existido outros núcleos de disseminação agropecuária, nomeadamente na América em torno da cultura do milho ou na China, com o arroz..Industrial.Foi acidentada a primeira viagem de comboio realizada em Portugal. Ao longo dos cerca de 40 quilómetros que separam Lisboa do Carregado, nesse 28 de outubro de 1856, perderam-se carruagens pelo caminho e deixaram-se passageiros à fome e à sede nos campos então desertos entre a Póvoa e Sacavém. Mas o comboio, que tantos terrores causaria nas populações da Europa e dos Estados Unidos, viera para ficar, engolindo distâncias a velocidades até aí inimagináveis. Assim o exigia a necessidade de transportar de forma eficaz e regular, sem os solavancos da mala-posta, não só um número cada vez maior de pessoas como também de mercadorias, fossem elas matérias-primas ou produtos já terminados..O caminho-de-ferro, desenvolvido ao longo da primeira metade do século XIX, é, pois, parte importante da revolução mais profunda da história desde o Neolítico. Em 1764, no coração do Lancashire conhecido por uma longa tradição têxtil, James Hargreaves criou a máquina de fiar hidráulica, dando-lhe o nome despinning jenny. A capacidade de produção de tecidos de algodão aumentaria substancialmente, desestruturando em pouco tempo uma tradição manufatureira de séculos, baseada em pequenas e médias unidades familiares. Com o vasto império a servir simultaneamente de fonte de matérias-primas e de mercado consumidor dos produtos (mesmo que, para isso, fosse necessário reprimir violentamente a milenar tradição têxtil da Índia, por exemplo), a Grã-Bretanha tornar-se-ia a oficina do mundo, com décadas de avanço sobre França, Alemanha e Estados Unidos..Mais do que as revoluções políticas suas contemporâneas (a Francesa e a Americana), a industrialização transformou drasticamente as vidas das pessoas, começando, antes de mais, por desencadear um intenso e muito prolongado no tempo movimento de êxodo rural. Em 1801, data do primeiro recenseamento fiável, a população da grande Londres excedia um pouco o milhão de habitantes. Um século depois, já ultrapassara os sete milhões. Com números diferentes, mas confirmando esta tendência, o mesmo aconteceria em todo o mundo ocidental. Acumulados em bairros que chocariam a própria Rainha Vitória, os operários alimentavam uma indústria que exigia turnos de 16 horas consecutivas mesmo a crianças com menos de 10 anos. Mas as necessidades destes novos urbanos, cada vez mais tensos no confinamento da miséria, tornar-se-iam, por sua vez, o motor de novas indústrias e novas políticas..Demográfica.Foi com uma gargalhada, mais de sarcasmo do que de alegria, que a Inglaterra do final do século XVIII acolheu o conceito de vacina. Tendo observado que as vacas sofriam uma versão benigna da varíola, doença que anualmente matava ou desfigurava gravemente mais de 400 mil pessoas em toda a Europa (incluindo o Imperador Pedro II da Rússia e o rei Luís XV de França), o médico e naturalista Edward Jenner propôs-se pôr à prova a ideia, muito difundida nos campos de Inglaterra, de que as raparigas que trabalhavam na ordenha destes animais, quando atingidas pela doença, sofriam menos do que um rei, no esplendor do seu palácio. Apesar das vozes que se ergueram contra a experiência, Jenner demonstrou a validade da sua teoria, mas as campanhas em prol da vacinação (antivariólica, mas muitas décadas mais tarde também contra a tuberculose, difteria, tétano e febre-amarela) tinham ainda muitas resistências para vencer..Sem as vacinas não é possível, porém, compreender a transformação do modelo demográfico tradicional, em que a elevada natalidade era consecutivamente anulada pelo efeito devastador de guerras, epidemias e fomes quase tão sazonais como as estações do ano. Ao longo do século XIX, graças à implantação estatal de políticas de saúde, em que às campanhas de vacinação se somaram medidas de saneamento público, o que parecia fatalidade mudou para sempre. A mortalidade infantil que até aí atingira, com a mesma brutalidade, cabanas e palácios, decresceu significativamente, ao mesmo tempo que a esperança de vida à nascença se prolongava. A humanidade chegaria ao primeiro bilião de habitantes, por volta de 1830 e dobraria esse número em 1927, sendo necessários apenas mais 34 anos para chegar, no princípio da década de 1960, ao terceiro bilião. Meio século volvido somos já 7,7 biliões..Ao impacto dos avanços científicos na saúde de cada um há que somar uma inegável melhoria das condições de vida das populações. Embora as cidades oitocentistas descritas por Charles Dickens ou Zola se pareçam muito com a nossa ideia de inferno de terra, a produtividade industrial e agrícola, somada à crescente globalização do comércio, tornou os seus habitantes menos dependentes dos caprichos da natureza do que alguma vez tinham sido os seus antepassados. Nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, a população ocidental conheceria um nível de bem-estar inédito: casas mais confortáveis, melhor acesso à saúde e à educação, férias pagas e facilidades de consumo..Sexual.1969 foi o ano da dupla Serge Gainsbourg-Jane Birkin. O compositor francês e a sua namorada britânica causaram escândalo com duas canções de mensagem mais do que explícita: 69, Année érotique e Je T'Aime, moi non plus. Houve quem lhes partisse os vinis e pressionasse as rádios a banir os seus nomes, mas a verdade é que a dupla limitara-se a dar expressão musical e performativa à chamada revolução sexual iniciada quase dez anos antes, com a invenção e a comercialização da pílula contracetiva..O mérito do invento vai para o biólogo de Harvard Gregory Pincus, que, ao longo de cinco anos, trabalhou em laboratório aquilo que dizia ser "um medicamento para aliviar as dores menstruais". Era o eufemismo possível numa América puritana que ainda corava de horror ao atribuir ao rei do rock o epíteto de Elvis, The Pelvis..Embora o real alcance social da revolução desencadeada pela pílula (posta à venda nos EUA em agosto de 1960) seja hoje questionado por antropólogos como Michel Bozon ou pela sexóloga Shere Hite, a verdade é que ela trouxe à mulher uma nova soberania sobre a sua própria intimidade e, a partir daí, também sobre o seu destino. De repente, havia vida para além do casamento, do cuidar da casa e dos filhos. Muitas tornaram-se as primeiras das suas famílias a aceder ao ensino superior, a uma carreira profissional e à independência financeira..Tão radical mudança teve a sua expressão na moda (com a minissaia a impor-se, desde grandes metrópoles como Paris ou Londres até países então periféricos como Portugal), na musica pop/rock e no cinema. Na Califórnia, os hippies, de flor no cabelo e túnicas multicoloridas, advogavam as alegrias do amor livre, fora do casamento. Em Paris, nas manifestações de 1968, entre os muitos slogans pintados nas paredes, podia ler-se "Gozem sem entraves." Mas esta seria ainda uma revolução apenas para heterossexuais. A outra só se iniciaria nos anos 1990 e ainda hoje está longe de se considerar completa..Digital.Houvesse ainda dúvidas sobre o impacto da revolução digital, desencadeada nas últimas décadas do século XX, e este período de confinamento compulsivo tê-las-ia dissipado. Imaginemo-nos sem possibilidade de teletrabalho ou sequer de minguar saudades graças a um sem-número de aplicações. Sentir-nos-íamos talvez a viver no mundo dos nossos bisavós, há cem anos, sob o efeito da pneumónica..Considerado por alguns historiadores como a terceira revolução industrial (a primeira relacionada com a energia a vapor e a segunda com a eletricidade), o processo que levou à digitalização iniciou-se, em laboratório, bem mais cedo do que imaginamos. No final da década de 1960, a DARPA - The Defense Advanced Research Projects Agency criou a DARPANET com o intuito de interligar, na partilha de dados, bases militares e universidades que faziam pesquisa para o governo. Mas a internet, tal como a conhecemos hoje, acessível ao comum dos mortais, só foi desenvolvida a partir do princípio dos anos 1990, através do World Wide Web (rede de alcance mundial), que, em 1997, se transformou no padrão mundial. De repente, as comunicações interpessoais, mas também o acesso ao conhecimento e à informação, estavam mudados para sempre..A montante, empresas como a Apple e a IBM queriam levar tamanha transformação à casa de cada um, disputando, entre si, a primazia no mercado do fabrico de computadores pessoais, destinados já não ao uso de cientistas mas de pessoas e empresas comuns. Em 1976, Steve Jobs e Steve Wozniak tinham lançado o Apple I, justamente considerado um dos primeiros computadores domésticos pessoais do mundo. A IBM, que trabalhava em computação desde a Segunda Guerra Mundial, respondeu com o PC, em 1981. Era o princípio de uma "guerra fria" tecnológica de que todos somos testemunhas e, de certo modo, intervenientes.