É só fazer as contas: os europeus são os povos que mais tempo estiveram em guerra, ao longo da História. Não deve espantar, por isso, que não tenham evitado a guerra na Ucrânia, embora pudessem tê-lo feito (bastava cumprir os acordos de Minsk). Por maioria de razão, não espanta, igualmente, que não falem da iniciativa de paz africana para tentar encontrar uma saída negociada para mais esta guerra que assola o continente europeu, com repercussões verdadeiramente globais..O pensamento do establishment europeu (e ocidental) foi resumido aqui no DN pelo antigo secretário geral adjunto da ONU e conselheiro em segurança internacional, Victor Ângelo: "A História ensina-nos que com gente assim, para mais na liderança de uma superpotência, não há acordos de paz que possam ser considerados fiáveis". Os destinatários da alusão são óbvios, mas, neste caso específico, a mesma deve ser igualmente dirigida àqueles que não cumpriram os acordos de Minsk..Entretanto, a maioria demográfica do planeta pensa de maneira diferente. Apenas para dar um exemplo, menciono um facto de que poucos falam: nos próximos dias, desloca-se a Moscovo e Kiev uma missão de paz africana, composta pelos presidentes Azali Assoumani, das Ilhas Comores e atual líder em exercício da União Africana, Cyril Ramaphosa, da África do Sul, Abdel Fattah Al-Sisi, do Egito, Macky Sall, do Egito, Yoweri Museveni, do Uganda, e Hakainde Hichilema, da Zâmbia. A iniciativa, lançada em meados do mês passado pelo presidente sul-africano, foi corroborada pelo mesmo na semana passada, durante a reunião dos BRICS realizada na cidade do Cabo..A primeira notícia acerca desta iniciativa havia sido lançada por Jean-Yves Ollivier, líder da organização não-governamental Fundação Brazaville. Segundo Ollivier, o objetivo da missão é "iniciar e ajudar a lançar um diálogo entre os dois países" (Rússia e Ucrânia). As posições dos países africanos, acrescentou ele, "são incondicionais", leia-se, não são favoráveis a qualquer uma das posições em confronto. Se necessário, repita-se a leitura as vezes que forem necessárias, para que não haja tergiversações..Segundo o comunicado do encontro dos BRICS recentemente realizado na cidade do Cabo, os seis líderes que compõem a missão africana para a paz na Ucrânia "concordaram em dialogar com o presidente Putin e o presidente Zelensky sobre os elementos para um cessar fogo e uma paz duradoura na região". Os ministros dos negócios estrangeiros dos países em questão foram instruídos, conforme disse Ciyril Ramaphosa, a finalizar os elementos para um roteiro para a paz na Ucrânia. Um facto precisa de ser realçado: a iniciativa africana é a primeira que tanto Putin como Zelensky concordam em receber. O secretário-geral da ONU, António Guterres, também apoia a iniciativa..Como é sabido, as posições dos países africanos em relação à guerra na Ucrânia não são unânimes, mas a maioria inclina-se para uma posição de neutralidade. O complexo EUA/OTAN/UE tem pressionado fortemente os países do continente a adotarem uma posição clara de condenação da Rússia. A África do Sul, por estar por detrás da iniciativa de paz africana, tem sido dos estados mais pressionados, aparentemente sem sucesso..A tendência dos observadores e comentaristas ocidentais é atribuir a neutralidade africana em relação à guerra na Ucrânia a fatores históricos e até ideológicos. Se os primeiros podem ter algum peso (afinal, a antecessora da Rússia apoiou a luta dos povos africanos pela sua independência), os segundos não fazem grande sentido, pois, tal como a Rússia não é a antiga URSS, hoje nenhum país africano se continua a considerar "socialista". Mesmo os partidos que, no passado, pertenceram a essa linhagem, foram todos capturados pelas delícias do capitalismo (com aspas ou sem aspas, conforme a posição de cada um)..A posição africana em relação à guerra na Ucrânia é explicável por um facto que foi recentemente recordado pela ministra sul-africana dos negócios estrangeiros, Naledi Pandor, na reunião dos BRICS realizada na cidade do Cabo: - "A atenção e os recursos dos nossos parceiros mais ricos foram desviados e as agendas das nossas organizações multilaterais já não respondem às necessidades e exigências do Sul Global"..Ou seja, não se trata, ao contrário do que tentam fazer passar os "ideólogos" do envolvimento do Ocidente Alargado na guerra da Ucrânia, de apoiar a invasão russa, mas de impedir que um conflito localizado no leste da Europa faça esquecer os grandes desafios da humanidade, alguns dos quais, como a pobreza, atingem particularmente o continente africano..As migalhas com que os países ricos acenam às nações africanas não justificam alimentar a loucura de uma guerra que poderia perfeitamente ter sido evitada. Essas promessas podem ser superadas, de longe, pelos fundos disponíveis no chamado Sul Global. Por isso, a iniciativa africana de paz na Ucrânia faz todo o sentido..Escritor e jornalista angolano Diretor da revista África 21