Quando embarcámos, nenhum de nós sabia muito bem o que ia acontecer. Prometeram-nos um encontro com um dos animais mais emblemáticos da selva e também um dos mais temidos. Do que não estávamos à espera era que nos levassem para o meio do Rio Negro, um dos maiores rios da Amazónia, que nos pedissem que passássemos para uma pequena jangada ancorada no meio do rio. De inicio, as águas escuras pareciam calmas, até que os guias começaram a acenar com peixe. De repente vultos enormes cinzentos e cor-de-rosa começaram a elevar-se sobre as águas. A adrenalina aumentou quando nos disseram para entrarmos no rio. Quase ninguém acreditou que nos estavam a dizer para nadarmos sem pé, num rio onde, assim que mergulhávamos uma mão, esta desaparecia. Habitat de piranhas, anacondas, jacarés e estes seres enormes que têm fama de levar pessoas para o seu reino encantado no fundo do rio. Seres que de noite se transformam em jovens rapazes e conquistam as moças, deixando-as grávidas ou levando-as para nunca mais aparecerem. Seres que roubam peixe aos pescadores e lhes estragam as redes. Seres encantados que as comunidades das zonas ribeirinhas temem, respeitam e muitos odeiam: o boto..Na Amazónia vivem duas espécies de golfinhos: o boto-vermelho também conhecido como boto cor-de-rosa (em inglês Amazon river dolphin) e o boto-tucuxi. Com cerca de 1,5 metros de comprimento, 50 kg de peso e coloração cinzenta, o Tucuxi vive em grupos que podem incluir até vinte indivíduos. Muito tímido, não se aproxima das embarcações nem de redes de pesca e, não tolerando o cativeiro, pouco mais se sabe acerca deste animal que, apesar de viver em água doce, pertence à família dos golfinhos que vivem no mar..Podendo atingir os 2,5 metros de comprimento e os 185 kg de peso, o boto-vermelho é o maior dos golfinhos de rio. Embora nasça com uma coloração cinzenta, à medida que cresce, o boto vai-se tornando mais claro e progressivamente mais rosa e escarlate. Menos gregários que os parentes que vivem no mar, é vulgar encontrar o boto sozinho ou em pares. As fêmeas atingem a maturidade sexual pelos 7 anos e os machos por volta dos 10. A gestação é de pouco mais de 12 meses. No meio selvagem estes animais podem viver até aos 45 anos..Mais aventureiro e menos tímido, o boto cor-de-rosa é protagonista de muitas superstições e lendas que nem sempre o favorecem. Algumas investigadoras que se dedicam a estudar estes animais são, por vezes, aconselhadas a levar consigo alho e a não olhar diretamente para estes cetáceos para que não sejam encantadas e levadas para o fundo do rio..Uma sugestão feita a Vera da Silva, bióloga, doutorada pela Universidade de Cambridge e que, desde 1978, se dedica a estudar e a lutar pela preservação da Amazónia. Nascida no Rio de Janeiro e criada em Brasília, a jovem bióloga decide, assim que termina a licenciatura, viajar para Manaus com o objetivo de estudar peixes mas acabou por se deixar fascinar pelos mamíferos marinhos que habitam neste território onde se incluem, para além do boto, o manatim (na região conhecido como peixe-boi) e a lontra..Quando lhe perguntamos de que forma esta pandemia tem vindo a afetar a conservação da selva, Vera da Silva, coordenadora do Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazónia, explica que tudo se tornou mais difícil ainda antes do aparecimento deste novo coronavirus causador da covid-19. "Desde que este governo (Jaír Bolsonaro) tomou posse, há dois anos, temos assistido à destruição da legislação que tinha o intuito de proteger a Amazónia. Fomos confrontados com projetos de desenvolvimento para a região que não fazem sentido.".A pandemia veio adensar o problema impedindo os investigadores de prosseguirem com o trabalho de campo. As reservas e áreas indígenas foram todas fechadas, até os cientistas estão impedidos de lá entrar. Desde março de 2020 que a bióloga e coordenadora do Projecto Boto não tem quaisquer dados de uma população de golfinhos que monitoriza há 26 anos na reserva Mamirauá. "Todos os anos capturávamos, marcávamos, verificávamos que fêmeas tinham crias, recapturávamos filhotes, avaliávamos o crescimento, tudo isso está parado" conta Vera da Silva. E acrescenta: "com as mudanças nas políticas ambientais brasileiras, não existe uma fiscalização efectiva, o que se agravou com a pandemia"..Exceto a desflorestação que é controlada através de satélite, não é possível fiscalizar outros eventuais ataques ambientais. Por outro lado, os animais parecem estar a voltar a locais onde há muito não eram avistados. Nos terrenos do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazónia), uma área verde dentro da cidade de Manaus, Vera da Silva esteve, há poucos dias, muito perto de um grupo de macacos parauacu, um animal tímido, agora menos discreto que parece ter tomado conta deste pequeno território..Miriam Marmontel, natural de Rio Grande do Sul, descobriu o fascínio pelos mamíferos aquáticos ainda enquanto jovem estudante. Doutorada em recursos florestais e conservação pela Universidade da Florida nos Estados Unidos, o primeiro foco de Miriam foi o peixe-boi. A convite do idealizador da reserva Mamirauá, reserva com 1 milhão e 124 mil de hectares de extensão, situada a 500 km de Manaus, a oceanógrafa começou o seu trabalho na Amazónia. Há 30 anos que vive em Tefé, a cidade mais próxima das reservas de Mamirauá e Amanã, dedicando-se a estudar e a proteger a selva..O trabalho nesta reserva é feito em parceria com as comunidades que lá vivem. Muitas vezes, estas pessoas integram as equipas de investigação. Felizmente estes territórios não foram afetados pelos grandes fogos que originaram manchetes nos meios de comunicação de todo mundo, mas Miriam não tem dúvidas: "o Governo Federal não deu o apoio que devia ter dado, não adotou as medidas necessárias"..Desde o inicio da pandemia que a líder do Grupo de Pesquisas de Mamíferos Aquáticos do Instituto Mamirauá apenas recebe noticias das pessoas que vivem nas reservas e se deslocam à cidade pois as viagens estão proibidas. Até o centro de reabilitação que lá existe para ajudar animais em dificuldades se encontra vazio e fechado, sem fonte de financiamento. "Não sabemos o que está a acontecer pois isolámo-nos das comunidades, mas muito provavelmente a caça aumentou. Tem aparecido carne de peixe-boi na feira de Tefé e de outros animais também. Acho que quando voltarmos vamos ter uma surpresa ruim" explica Miriam Marmontel..Tal como acontece com os mamíferos aquáticos que vivem no mar, os que vivem nos rios enfrentam a ameaça das redes de pesca, onde ficam presos e acabam por se afogar e morrer. Aliás, Miriam Marmontel está a desenvolver um projeto de colocação de pingers, pequenos aparelhos colocados nas redes de pesca que emitem um som que afasta os golfinhos. Projeto que ainda não avançou porque aguarda autorização do governo..A captura para servirem de isco para pescar piracatinga é um dos principais problemas que os botos enfrentam. Apesar da captura deste peixe estar proibida até Junho de 2021 devido ao elevado índice de mercúrio presente nos seus tecidos, causador de problemas neurológicos graves nos seres humanos, tudo indica que a piracatinga continua a ser pescada pois não há fiscalização..Os botos também são perseguidos pelos pescadores que acreditam que os golfinhos lhes roubam o peixe e por causa dos danos que os animais provocam nas redes. Muitas vezes são mortos por vingança ou até por medo como também acontece com a lontra. Já o peixe-boi está em risco uma vez que a sua carne é muito apreciada..A fragmentação do habitat, como a que aconteceu nos rios Tocantins e Madeira por causas das barragens aí construídas, dificultou a sobrevivência e isolou alguns grupos de golfinhos, diminuindo a variabilidade genética dos indivíduos, imprescindível para manter uma população saudável..A contaminação por fertilizantes utilizados nas explorações agro-pecuárias também constitui um problema principalmente desde o fim da proibição destes químicos pelo governo de Jaír Bolsonaro..O mercúrio, essencial na extração de ouro, é outra substância que está a contaminar os solos e as águas da Amazónia. Mas esta contaminação não intoxica apenas os animais, atinge também as pessoas. "O mercúrio está disseminado por toda a Amazónia. Mesmo em locais onde não há extração de ouro, o mercúrio chega pelo ar, pela água. Eu tenho muito mercúrio no meu cabelo" afirma Miriam Marmontel que acrescenta "mas infelizmente este problema deixou de ser discutido". Vera da Silva confessa que não come peixe todos os dias e evita as espécies que possuem um nível mais elevado de contaminantes aliás, a bióloga acredita que os organoclorados e os metais pesados estejam na origem de muitas doenças que estão a afetar pessoas e animais que vivem na região..Ser investigador na Amazónia implica ter muitos cuidados. Existe a crença errada de que os animais selvagens são saudáveis mas, na verdade, podem transmitir muitas doenças aos seres humanos. Mas mesmo numa selva, outros seres humanos podem ser mais perigosos do que qualquer fera que se possa encontrar na floresta. Por ser uma rota de tráfico importante, muitos cientistas já correram perigo de vida..Vera da Silva já foi ameaçada com um arpão mesmo junto à face, os alunos da bióloga já foram atacados e a base de pesquisa assaltada. Quando Vera lançou um alerta internacional por causa da matança dos botos, alguns grupos criminosos tentaram intimida-la e a família ficou muito preocupada..Miriam Marmontel já teve de se esconder de piratas mas garante que se sente segura em Tefé.."Eu sou do mar, eu quero voltar para o mar. Já passei por muitas crises financeiras em que pensei em deixar a Amazónia mas ainda tenho tantos projetos e tanto trabalho para fazer que estou sempre a adiar" confessa Miriam Marmontel.."Eu não sou otimista mas vou lutar até ao fim para manter a floresta" afirma Vera da Silva, que já podia estar reformada mas considera que ainda há muito trabalho a fazer. "Temos de lutar pela Amazónia por causas dos serviços ambientais que nos proporciona, temos de respeitar e proteger esta floresta porque é a casa de milhares de espécies". A luta para estas mulheres continua, mulheres de vontade férrea que não desistem facilmente para bem do planeta..dnot@dn.pt