Tem 40 anos o famoso filme de Spielberg, E.T. que conta a amizade entre Elliott, um rapazinho de 10 anos, e um extraterrestre de olhar ternurento e indicador luminoso que não conseguiu embarcar a tempo na nave dos seus companheiros em visita ao planeta Terra para recolher plantas numa floresta da Califórnia. Quem viu o filme não esquece aquele momento mágico em que o ET aponta com o seu dedo brilhante para o céu e diz a Elliott que quer voltar a casa: "ET go home"..Quem tem filhos ou netos pequenos decerto reconhece a imagem de um pequeno dedo estendido, já não para o céu como o ET, mas para todas as superfícies brilhantes que sejam ou se assemelhem a ecrãs. Aqueles pequenos dedos parecem já ter nascido com o movimento certo para fazer deslizar as sucessivas imagens..Muitos pais e educadores manifestam preocupação com os efeitos do acesso das crianças ao digital, sobretudo na primeira infância. Trata-se, aliás, de um daqueles temas recorrentes em que muitas vezes se oscila entre comportamentos passivos ou atitudes assertivas: ora encontramos pais e mães que conseguem tempo e paz para a sua atividade profissional, lazer ou vida social mantendo os filhos entretidos - quase hipnotizados - por meio de um smartphone ou tablet, ora aqueles que resistem em permitir que as crianças tenham acesso indiscriminado aos dispositivos digitais..Quando alguns avós comentam esta tendência iniciando a frase com "no meu tempo..." - a que se segue um muro de lamentações -, não posso deixar de recordar o livro de francês do 2.º ano (agora 6.º ano) que dedicava uma longa unidade didática aos malefícios da televisão que agora, aliás, pouco interessa aos mais novos..Não esqueçamos que a tecnologia acompanhou a humanidade desde as suas primeiras interações com o planeta e cada novo salto tecnológico implicou alterações sociais que contribuíram para a evolução humana. Também acontecerá com a era digital. Mesmo com esta ressalva sobre o longuíssimo historial de "novas tecnologias", a utilização intensiva do digital por parte dos mais novos é um tema que importa abordar de várias perspetivas, nomeadamente do ponto de vista da neurociência..Há poucas semanas a OEI lançou o estudo A primeira infância na era da transformação digital. Uma visão ibero-americana: na primeira parte, apresenta as descobertas e reflexões de especialistas sobre o impacto da interação das crianças com a tecnologia e a digitalização (T+D); e, na segunda parte, expõe experiências e políticas públicas que procuram responder à necessidade de preparar os mais novos para a sociedade digital..Como sabemos, a fase mais importante e transcendente do desenvolvimento humano é a primeira infância e é nesse período que se consolidam as bases e a estrutura da personalidade. O uso da tecnologia pelos mais novos pode ter um impacto negativo no seu desenvolvimento em domínios como a linguagem, a socialização ou o afeto, mas também pode ter efeitos positivos e favorecer processos de aprendizagem e, até, estreitar a relação com pessoas ausentes. Pais e educadores têm aqui um papel fundamental promovendo o uso adequado e responsável das tecnologias, através de um acompanhamento que previna comportamentos de risco. Existem, sem dúvida, vantagens na utilização das tecnologias em contextos educativos e de aprendizagem, mas não podem substituir o tempo de interação com a família, tanto em quantidade como em qualidade..Estamos perante gerações de nativos digitais que parecem mover-se quase naturalmente em direção às tecnologias que atravessam cada vez mais os nossos quotidianos (do frigorífico às luzes)..Júlio Machado Vaz, protagonista, com Inês Maria Menezes, do famoso programa de rádio O amor é..., na qualidade de psiquiatra, refletia esta semana sobre os efeitos do digital nos mais novos e, com a sua longa experiência que ajuda a construir o bom senso, propunha soluções tão simples (e difíceis) como a de "negociar" os tempos de utilização diária das tecnologias e, diria eu, reforçar a literacia digital de crianças e adultos para aprenderem como encontrar informação confiável e usar as tecnologias com segurança..A pandemia veio acelerar a transformação digital e não haverá retrocessos, apenas importa que estejamos implicados e conscientes de perigos e oportunidades deste admirável mundo novo..Diretora em Portugal da Organização de Estados Ibero-Americanos