Acordo secreto

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O actual governo tem uma enorme vantagem face a todos os antecessores: está livre de manifestações, ataques, greves e críticas. Gozando do apoio dos partidos de extrema-esquerda, beneficia de grande paz pública. Somando a isso uma comunicação social ainda favorável, o resultado é um dos mais longos estados de graça da democracia portuguesa.

Existem por cá muitas forças políticas e sociais, com orientações muito variadas; mas não restam dúvidas de que a grande maioria dos movimentos de protesto tem liderança do PCP e clones, com o Bloco de Esquerda seguindo-lhe as pisadas. Obter o seu apoio, algo que ninguém conseguira até António Costa, é inestimável para qualquer situação política. Isso é particularmente importante na presente emergência económico-financeira.

O país está pendurado num fio. Por todo o lado, do Estado às empresas, da banca aos consumidores, a dívida é tão gigantesca que já nem se vê. Pior, a economia vive há três anos em crescimento anémico e frágil. Estamos tão mal que os recentes números do Instituto Nacional de Estatística para o terceiro trimestre, com desemprego de 10,5% e crescimento de 0,8%, geraram grandes celebrações públicas. Já qualquer coisita nos alegra! As medidas para inverter esta difícil situação seriam duras, exigentes, dolorosas. Graças à paz social, o actual governo tem condições ímpares para as tomar e salvar o país da desgraça. Ou melhor, teria, se não enfrentasse dois grandes obstáculos. Não há paz grátis.

O primeiro bloqueio é o pacto político secreto com a esquerda. É conhecido o texto do acordo de 10 de Novembro de 2015, entre PS, BE, PCP e PEV, que definiu o presente quadro parlamentar. É, porém, evidente que esses compromissos não chegam para pagar os enormes benefícios de que o governo tem gozado. Estes incluem, além dos votos parlamentares, uma cumplicidade sociopolítica, declarada ou renitente. Só se fossem tolos é que esses partidos se teriam contentado com aquilo que assinaram às claras. Tem de haver um contrato oculto.

Os sinais dele são, aliás, evidentes. O Ministério da Educação, por exemplo, está totalmente entregue ao PCP e à Intersindical. A finalidade da política educativa deixou de ser os alunos para se centrar nos professores. Fechar colégios, repor benesses, apaparicar sindicatos é a prioridade absoluta da orientação. Já se começa a falar do regresso do livro escolar único que, com desculpas solidárias, permitirá impor orientações ideológicas. Se aqui a cedência é quase escandalosa, em muitas outras áreas se sente a crescente influência comunista. Nos transportes, na saúde, no funcionalismo ouvem-se propostas e vêem-se medidas que andavam omissas desde 1975. O PCP, que há muito se definiu como defensor de certas corporações instaladas, tem um caderno de encargos bem estabelecido, que impôs ao PS em troca de apoio.

Pelo seu lado, o Bloco, mais ingénuo e folclórico, parece ter sido enganado nas negociações. As questões fracturantes, sua imagem de marca, acabaram por sair baratas ao executivo e agora os dirigentes querem mais. Mas sem um propósito político claro, ainda embrulhado em debates doutrinais, o Bloco não sabe bem o que exigir. Por isso é desse lado que se ouvem mais queixas, com pedidos de renegociação do acordo, tentando emendar a mão. Quem se opõe a isso é o PCP, confortável na situação.

O segundo grande obstáculo à governação são os neo-socráticos. Trata-se de dirigentes que, ainda viciados nas velhas atitudes despesistas, insistem em ignorar a situação nacional para prosseguir projectos megalómanos. Um dos exemplos mais claros desta posição é o sucessor de António Costa na Câmara de Lisboa. O Dr. Fernando Medina, apesar de não ter sido eleito para o cargo, considera-se dono da capital, pretendendo redefinir o trânsito a seu gosto. Sem contemplações com o equilíbrio financeiro da autarquia, decidiu estreitar as vias de rodagem, confiante de que o ambiente será beneficiado com os engarrafamentos resultantes. Numa jogada digna de Trump, obrigará os próprios automobilistas a pagar as remodelações que os irão prejudicar. Tal delírio de obras só tem paralelo nos tempos áureos do endividamento.

António Costa tem uma oportunidade ténue de conseguir evitar o colapso económico-financeiro eminente, e goza de condições políticas ímpares para a realizar. Infelizmente, o pacto secreto e os velhos hábitos políticos, de que o Ministério da Educação e a Câmara de Lisboa são exemplos extremos, mas não únicos, ameaçam arruinar as hipóteses de salvação nacional. Mas, ao menos, desta vez iremos ao fundo em paz social.

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