Acidente de avioneta em praia da Caparica. Perícias atrasam inquérito

Ministério Público alegou que falta o relatório do Gabinete de Investigação de Acidentes Aéreos ao desastre com dois mortos ocorrido em agosto de 2017. Diretor do gabinete diz que não faz investigação para o MP, que deve promover as suas próprias perícias
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O inquérito relativo ao acidente com uma avioneta Cessna que causou dois mortos ao aterrar de emergência numa praia da Caparica, em agosto de 2017, está atrasado e o Ministério Público atribuiu a demora à alegada falta do relatório pericial do Gabinete de Investigação e Prevenção de Acidentes Aéreos e Ferroviários (GIPAAF). O MP considera que diligências como a simulação de voo e a perícia à aeronave são essenciais mas dependem de "entidades terceiras que tardam na resposta", como o GIPAAF. Em causa estão dois crimes de homicídio por negligência. Contudo, o diretor do GIPAAF disse ao DN que não faz relatórios periciais mas sim relatórios de investigação de segurança, investigação esta que tem como "único objetivo a prevenção de futuros acidentes e incidentes, sem apurar culpas nem imputar responsabilidades". Nelson Oliveira adiantou que o relatório está numa fase de recolha de comentários de entidades e que deverá ser apresentado "no final de novembro ou início de dezembro" na sua página de internet.

O diretor afirma que "o GPIAAF não é um órgão de investigação do Ministério Público nem tão-pouco deve participar em processos que visem apurar culpas ou responsabilidades, sob pena de a sua missão de melhoria da segurança ficar prejudicada". Nelson Oliveira diz que "o Ministério Público pode e deve promover as suas próprias perícias, com recurso a peritos próprios nas matérias em apreço, como aliás o faz noutros tipos de processos judiciais", além de que o "protocolo estabelecido entre o GPIAAF e a Procuradoria-Geral da República prevê colaboração entre as duas entidades para permitir o acesso e partilha de elementos factuais e evidências por ambas as partes, para que cada qual possa desenvolver o seu trabalho". Conclui o responsável, na resposta por escrito ao DN, que "o GPIAAF, durante toda a investigação, sempre facultou ao Ministério Público todos os elementos factuais e evidências que este solicitou para o desenvolvimento do seu processo."

Segredo de justiça terminou

A posição do MP foi conhecida num recurso para a Relação da Lisboa, em que contestou, sem sucesso, duas decisões da juíza de instrução do processo que corre em Almada. O MP pretendia que a juíza de instrução do processo declarasse a especial complexidade do processo e, caso isso não se verificasse, que adiasse por três meses o acesso aos autos, isto é prolongasse o segredo de justiça. Em dois despachos, a juíza recusou ambas as pretensões do MP e o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou essas decisões, com os juízes a estranharem a demora nas perícias a um acidente que ocorreu há mais de um ano. E assim arguidos e assistentes já têm acesso aos autos.

A juíza de instrução criminal justificou a recusa no prolongamento de mais três meses no segredo de justiça por nada ter "sido alegado pelo Ministério Público que justifique objetivamente a manutenção dos autos em segredo de justiça pelo período de mais três meses, acrescentando-se que se trata de uma investigação pela prática de crimes negligentes".

No que toca ao despacho que indeferiu a especial complexidade do processo, o MP argumentou que os autos "revelam-se de especial complexidade, não pela natureza do crime em investigação, mas pelas diligências de prova cuja realização ainda se mostra necessária com vista a apurar a responsabilidade dos arguidos, face ao meio utilizado para a prática dos factos e às circunstâncias em que os mesmos ocorreram, que implicam conhecimentos de aviação e acerca do funcionamento da aeronave em questão, a realização de perícias (que ainda não se mostram concluídas) e a simulação de voo, e que exigem aliás a nomeação de peritos para auxiliar à investigação."

A juíza respondeu que "não se pode confundir demora na realização das diligências de produção de prova durante o inquérito com a complexidade das mesmas, sob pena de, na maior parte dos casos, terem todos os processos em fase de inquérito de ser considerados de especial complexidade". No caso em concreto, apontou, "há apenas dois arguidos constituídos, não se afigurando estar em causa qualquer rede ou associação criminosa ou que aqueles dois arguidos tenham cometido uma tal infinidade de crimes ou que a prova a recolher seja tão extensa e difícil que permita classificar este processo como especialmente complexo". E concluem que "não se encontram reunidos os pressupostos necessários à atribuição do carácter de especial complexidade".

Os juízes da Relação deram razão à juíza de instrução. Em relação ao segredo de justiça, os desembargadores José Adriano e Vieira Lamim classificam de inútil a pretensão do MP até porque os três meses a mais requeridos já foram ultrapassados. O despacho da juíza é de abril e o acórdão da Relação tem data de 9 de outubro.

Juízes estranham demora

No que toca à especial complexidade do processo, os juízes observam que "os arguidos não estão sujeitos a nenhuma das aludidas medidas de coação para cujo prazo releve a declaração de excecional complexidade". Estão ambos, piloto e aluno que seguiam na avioneta, com termo de identidade e residência.

"Não se duvida dessa essencialidade para a prova, nem da eventual demora na realização de tais diligências, sendo certo que não deixa de se estranhar que a sua concretização não tenha sido possível no prazo normal do inquérito (oito meses), uma vez que a necessidade das mesmas era evidente desde o primeiro momento e tal prazo é, do nosso ponto de vista, suficientemente longo para o objetivo visado. Todavia, a demora na resposta por parte da entidade designada para proceder à aludida perícia não torna o processo mais complexo do que seria sem a aludida perícia", lê-se na decisão da Relação de Lisboa. Assim, o processo segue pela via normal, sem especial complexidade.

O acidente ocorreu em 2 de agosto de 2017, quando uma avioneta Cessna do Aeroclube de Torres Vedras fez uma aterragem de emergência na praia de São João da Caparica, em Almada. Duas pessoas, um homem de 56 anos e uma criança de oito, foram colhidas pela aeronave e morreram. O instrutor e o aluno saíram ilesos, tendo sido ouvidos pelo MP no dia seguinte. No mesmo dia, a Procuradoria-Geral da República emitiu um comunicado, no qual informou que piloto e aluno "incorrem na eventual prática de crime de homicídio por negligência", acrescentando que o inquérito judicial se encontrava em segredo de justiça, o que já cessou. A investigação é do MP de Almada, coadjuvado pela PJ de Setúbal.

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