"Muito satisfeita. Orgulhosa de ter sido mulher militar. De ter ajudado a abrir a porta para que as mulheres pudessem ser militares". Maria Alice dos Santos Dias Pereira tem um sorriso largo, bem-disposto, fala da sua história deixando transparecer o orgulho de uma vida militar - gosto que lhe terá sido "transmitido" por um tio-avô numa época da história de Portugal em que a entrada de mulheres nas forças armadas não era uma miragem, antes uma situação inconcebível..E é de história que a tenente-coronel Alice Pereira vai falando: da sua que, afinal, se confunde com as mudanças na Força Aérea até ao momento em que a presença de mulheres nas Forças Armadas se tornou uma situação normal. São cerca de 10% do total de efetivo militar (30 mil), como é referido num documento do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) - "Desigualdades Sociais, Portugal e a Europa", publicado em 2018..Da pequena pasta que transporta vai retirando louvores, documentos que comprovam a sua progressão na Força Aérea, sempre na área da saúde. E fotografias, principalmente duas: junto à sede da NATO em Bruxelas (em 1993) e um ano antes em Londres..E é aqui que a história da tenente-coronel ganha mais emoção: Alice Pereira foi a primeira portuguesa a participar em reuniões ao mais alto nível na Aliança Atlântida, o que aconteceu nesses dois anos. Na altura esta diplomada e licenciada em Farmácia era a mulher com a mais alta patente nas forças armadas nacionais - as enfermeiras paraquedistas já cumpriam serviço mas a sua carreira terminava numa patente mais baixa - e por isso representou o país nas primeiras reuniões em que a entrada de mulheres para a carreira militar foi discutida em grupos de trabalho onde já pontificavam as mais experientes norte-americanas, inglesas ou francesas. "Elas [as atuais militares] não sabem que ajudei a abrir-lhes a porta, eu saí em 1994 e elas começaram a entrar nesse ano. Foi a Força Aérea que liderou essa abertura.".Reformada desde 1994, Alice Pereira recorda essas reuniões onde se discutiram temas que agora parecem "normais": "Falávamos sobre os direitos e os deveres das mulheres militares, qual o quadro militar onde se inseriam [na saúde ou militar]." E entre as histórias que lembra conta a conversa que teve uma vez com a chairman de uma reunião: "Ela perguntou-me "a senhora é portuguesa? A representante de Portugal? Não me diga. É que é pontualíssima, é a primeira a chegar. Estou admirada.".Uma surpresa que para a tenente-coronel até nem tinha razão de ser. "Eu era como era. Já tinha sido habituada pelo meu "tio-avô [militar] ] e pelos meus pais que eram professores a ser disciplinada", frisa..Um anúncio no Diário de Notícias.A publicação da Portaria 439/72, a 6 de agosto, a abrir a possibilidade de existirem concursos de voluntárias "para o desempenho das funções médicas e farmacêuticas em qualquer ramo das forças armadas" foi o primeiro passo para as mulheres poderem entrar nas Forças Armadas. Depois, surgiu a oportunidade através de um anúncio publicado no Diário de Notícias em que a Força Aérea divulgava que ira abrir duas vagas - uma médica e uma farmacêutica.."Tinha a especialidade de análises clínicas, tirei três anos em Coimbra e dois em Lisboa. Quando cheguei à sala encontrei mais de 40 colegas e só havia dois lugares. Pensei "nunca é para mim, mas em todo o caso concorri na mesma. Depois foram-me telefonando dizendo "está nas 30", depois "nas 20", no final ficámos duas e fui escolhida devido à nota do curso." E assim Alice Pereira, que esteve na Madeira como responsável técnica na farmácia da capitania do Funchal e a dar aulas no liceu Jaime Moniz, entrou na Força Aérea em 1972 como aspirante, cumprindo o seu percurso - "sempre na área da saúde militar"..Trabalhou durante oito anos no laboratório de análises do então chamado hospital da Força Aérea, posteriormente assumiu a responsabilidade técnica da farmácia da mesma unidade, deu aulas durante quatro anos na Escola de Serviço Militar aos alunos de Cursos Técnicos de Farmácia. Mas o ponto alto da carreira foi mesmo ter sido designada a representante de Portugal nas reuniões da NATO como a militar nacional mais graduada..Missões que, diz, desempenhou de tal maneira satisfatória que a Força Aérea lhe concedeu louvores em que esses elogios estão expressos..Chapéu da FA "saiu" da sua casa.A tenente-coronel que faz parte da história das Forças Armadas, apesar de pouco conhecida, tem uma vida ligada à instituição militar ao ponto de ser também original da sua família o chapéu que as mulheres militares da Força Aérea usam.."Nós tínhamos um chapéu que era de homem - estava adaptado - e o general Lemos Ferreira [morreu no passado dia 23 de janeiro aos 90 anos] disse-me "ó doutora vamos fazer um chapéu para as senhoras". A minha filha [Fátima Pereira] estava na faculdade de Arquitetura e desenhou o atual chapéu que, depois de ter sido analisado pela manutenção militar, as mulheres usam.".São recordações que fazem parte da sua "biografia", como salienta enquanto reconhece que o facto de ter entrado no serviço militar casada e com filhas [tem duas, nenhuma militar, e quatro netos] ajudou a que não "sentisse tantas dificuldades, mas fui sempre cautelosa, e fui para o laboratório, nunca fui para Angola"..Como trunfo tinha a já referida pontualidade - "estava sempre antes das 08.00, eles não tinham nada a dizer. Mas nas reuniões por vezes havia dificuldades em mostrar aos médicos que as mulheres eram capazes de fazer as coisas que lhes competiam"..Teve uma "vida preenchida" - depois de sair da Força Aérea foi trabalhar 16 anos para um laboratório - mas também se diz orgulhosa desse percurso que começou no dia 1 de março de 1972 quando a aspirante Alice Pereira entrou no Hospital da Força Aérea e terminou em 1994 depois de receber louvores, uma medalha de comportamento exemplar e ter representado Portugal ao mais alto nível ajudando as força armadas a enveredarem por uma abertura que agora parece normal.