Abafa-te, abifa-te e avinha-te

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O frio, as músicas e as luzes de Natal trazem-me à memória os meses de inverno da minha infância. Mal eu começava a tossir, a avó Júlia surgia armada com uma colher de sopa a abarrotar de mel. A meio da tarde, a minha gula tinha direito a uma caneca onde brilhavam duas gemas de ovo, açúcar amarelo e um cálice de vinho do Porto, mistura que eu a ouvia bater vigorosamente na cozinha. À hora de deitar, a avó untava-me o peito com o bálsamo mentolado mais famoso do mundo. Depois, massajava-me os pés com o mesmo e envolvia-os em meias grossas. Dentro da cama que me tinham preparado com requintes de ritual, com direito a botija de água quente, jazia eu, franzina e de cabeleira farta, qual múmia de Ramsés II, soterrada pelo peso dos cobertores de papa, quentes, densos e felpudos, de lã tecida em teares antigos da Beira Alta. O conforto dos lençóis bordados pela tia Áurea não tardava a trazer-me o sono, envolto em aroma a mentol e ainda com o sabor a framboesa na boca, do xarope de cor encarnada.

São inúmeras as mezinhas que se acredita curar doenças: canjas de galinha, chá de cascas de cebola na mesa de cabeceira, cenouras com açúcar, chá de mel e gengibre, tisanas das mais variadas folhas, rodelas de batata embebidas em vinagre e enroladas num pano e depois colocadas na testa e até misturas com aguardente.

Não querendo oferecer desilusões como presente de Natal, a maioria destes remédios caseiros não têm grande utilidade e, embora uma aguardente com mel possa parecer aliciante aos mais corajosos, as bebidas alcoólicas não têm propriedades terapêuticas. Nem sequer o vinho quente, mesmo que se lhe acrescentem sabores natalícios como o cravinho e a canela. Poderes curativos do álcool? Só mesmo como desinfetante.

Por outras razões, que não as de confiar em mezinhas caseiras, após três anos consecutivos em queda, 2022 voltou a registar um aumento da percentagem de agregados com crianças e jovens que não procuraram o sistema de saúde perante um episódio de doença. De acordo com uma análise realizada pela Nova School of Business and Economics, a explicação para esta diferença reside nas características socioeconómicas dos agregados. A título de exemplo, em 2022, 18,37% dos inquiridos de agregados com jovens com menos de 15 anos não adquiriu todos os medicamentos necessários ao tratamento da doença. Os mesmos resultados surgem ao analisar indicadores adicionais como pedir a substituição de um medicamento de marca por um genérico ou não ir a uma urgência ou a uma consulta por falta de dinheiro. A conclusão consta de uma "Nota Informativa sobre Acesso das Crianças a Cuidados de Saúde" realizada pelos investigadores Carolina Santos e Pedro Pita Barros, no âmbito da Iniciativa para a Equidade Social, uma parceria entre a Fundação la Caixa, o BPI e a Nova SBE. Do "Relatório de Acesso a cuidados de saúde 2022", usando dados de 2013 a 2022, conclui-se que as condições económicas do agregado familiar determinam de forma considerável a capacidade de acesso a cuidados de saúde, mesmo num contexto de Serviço Nacional de Saúde (SNS), para o qual todos os utentes são iguais mas uns são mais iguais do que outros. Pense-se nos 1,7 milhões de portugueses que estão sem médico de família, veja-se a polémica em torno do tratamento de duas gémeas tornadas portuguesas em 14 dias que receberam o Zolgensma, uma terapia genética para a atrofia muscular espinal que custa cerca de quatro milhões de euros e foi atribuído neste caso alegadamente através de uma "cunha" da mas alta figura da nação. Ainda segundo a nota informativa, as famílias com menores condições económicas enfrentam barreiras de acesso mais elevadas. Mitigar essa dificuldade no acesso das crianças, e da população em geral, a cuidados de saúde passa, então, não só por políticas de saúde, mas sim pelo combate à pobreza.

Subdiretora do Diário de Notícias

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