A volta a Itália do cinema português

Fica numa rua sem canais e afastada das multidões que neste fim de semana deixaram Veneza em estado de sítio por um regresso brusco ao normal num carnaval sempre elegante. Chama-se Cinema Giorgione e é uma das únicas duas salas de cinema da cidade. Na vitrina dos posters encontra-se com grande destaque Belfast, de Kenneth Branagh, quase sempre em sessões dobradas, mas num outro canto salta à vista a belíssima solução visual a verde de A Metamorfose dos Pássaros, anunciado em sessão única ontem e integrado no Luso, uma mostra de cinema português em várias cidades italianas. Mais do que uma ação de promoção ou de charme, esta iniciativa da associação luso italiana Il Sorpasso tem intenções de exportação: os diversos filmes portugueses acabam por ter distribuição itinerante e podem ser apostas das salas, na maior parte dos casos com programação de arte e ensaio..Citaçãocitacao"Vou ser muito honesta: nunca esperei que A Metamorfose dos Pássaros tivesse esta vida toda! Fico muito feliz!", Catarina Vasconcelos. .Catarina Vasconcelos está feliz por estar em Veneza e por ser uma das convidadas deste Luso, logo ela que não pôde estar presente numa outra sessão especial do seu filme nesta cidade no verão passado. Giulia Briccardi, cinéfila que agora também está a ajudar esta operação de invasão portuguesa, tinha programado este candidato português ao Óscar de filme internacional para Ici Venice, sessões especiais feitas para a comunidade, garante que o cinema português acaba por ser sempre visto com muita curiosidade pelos jovens locais, apesar de avisar que depois da pandemia ainda ninguém voltou a sério ao seu exercício de cinefilia. Nada que não tire o sorriso a Catarina que devora todos os becos e ruas de Veneza ou não fosse a sua primeira vez nesta cidade encantada. Numa das ruas junto à água olha para a imponente ilha-cemitério e fica com vontade de a visitar, sobretudo quando lhe contam que o vaporeto que pára lá costuma estar a abarrotar de idosos carregados de flores e com expressões fechadas. Trata-se de uma imagem de cinema, daquelas automáticas e Catarina está já a preparar a próxima longa, Pintura Inacabada, onde a morte é um dos temas. Aliás, antes de chegar a Veneza esteve a pesquisar em Pádua e a adiantar trabalho.."Vou ser muito honesta: nunca esperei que A Metamorfose dos Pássaros tivesse esta vida toda! Fico muito feliz! Por outro lado, sem querer parecer mal-agradecida, creio que agora já é altura de pensar no novo projeto e ter estado em Pádua a trabalhar para o próximo filme deu-me algum alento! Seja como for, a viagem por todos festivais do mundo foi incrível...Mesmo quando não não estava presente - devido à pandemia - ia a melhor parte: o filme", conta..Neste primeiro carnaval pós covid parece haver um respeito pela tradição ainda maior. Não há veneziano que não tenha trocado a máscara sanitária pela máscara de bico e a animação inclui turistas de toda a parte, coisa que junto da Praça de São Marco provoca filas, filas e mais filas nas ruas apertadas. A pontaria da sessão do Luso nesta data claro que traz confetis, mesmo quando Catarina avisa não ser nada de celebrações carnavalescas, mas da organização também contrapõem que quem fugir a esta folia fica com mais vontade de ir ao cinema. "Estou com uma grande vontade de falar sobre o filme com as pessoas de Veneza. Os filmes só se finalizam perante o olhar de quem os vê... Há coisas sobre este filme que me deixam surpreendida com aquilo que é dito. Acho que as pessoas têm sido muito generosas e contam historias pessoais. Isso é comovente, deixa-me deveras tocada. Por exemplo, houve alguém que afirmou que sentiu o mesmo ao ver o meu trabalho quando viu pela primeira vez o oceano. Aquilo comoveu-me imenso!", explica a realizadora a caminho da Fundação Peggy Guggenheim, um dos tesouros de Veneza..Nesta segunda fase do Luso, o tour dos filmes está mais a norte, mas antes, Ana Rocha de Sousa e o seu Listen chegaram a Roma com considerável sucesso. Talvez seja preciso contextualizar que para haver esta adesão, os media italianos tiveram boa vontade e o passa-palavra acabe por funcionar. Acima de tudo, os proprietários dos cinemas das diversas cidades ficaram entusiasmados com a anterior edição. Ajuda igualmente que esta curadoria inclua a presença dos cineastas e de sessões com perguntas e respostas no final. Como sempre, por estes dias, uma ida ao cinema quer que se seja uma hipótese de evento para se trocar ideias e pontos de vista com os criadores. Alessandro De Re, programador do In Laguna Film Fest e do festival de curta de Lago, localidade nas montanhas Dolomitas, é um dos cicerones do Luso e é o primeiro a reconhecer esse sortilégio. Para este jovem cinéfilo, esta oportunidade é um privilégio para se dar a conhecer novas vozes do cinema português: "Penso que para algo como o Luso é mais interessante estar a revelar nomes como Catarina Vasconcelos, Pedro Cabeleira ou João Nicolau em oposição aos mais consagrados. Sinto que o cinema português tem uma nova geração que está a tentar encontrar um espaço. Devo confessar que os jovens italianos têm muita vontade em ver cinema português, em especial porque o caminho ficou aberto por cineastas como Pedro Costa e Miguel Gomes, por aqui nomes muito respeitados"..João Nicolau é outro dos realizadores portugueses presentes nesta pequena digressão italiana. Está a beber uma cerveja em frente ao mítico cinema Beltrade, cinema debaixo de uma igreja em Milão, num bairro "benzoca". A sessão de Techoboss é às 21h30 e os bares e restaurantes ao lado estão à cunha e parece improvável esta sala de trezentos e poucos lugares vir a esgotar para a sua sessão. Mas qual não é o seu espanto que um grupo numeroso de jovens chega em cima da hora e coloca o cinema bem composto. A comédia musical com Miguel Lobo Antunes chega a Milão depois de ter estado em pequenas cidades do norte de Itália e é o reputado crítico local, Mário Blaconá, quem apresenta o cineasta português. Nicolau, num inglês que todos compreendem, avisa que o filme é para se ver com calma e que não é cineasta de grandes velocidades..No fim, chegam aplausos e, na conversa com o público que dura 30 minutos, o cineasta parece estar bem sorridente, talvez por ter sabido que o seu Benfica tinha acabado de vencer o seu jogo da Liga portuguesa. Perguntam-lhe sobre o processo de escolha do ator principal, neste caso o não ator Lobo Antunes, e Nicolau conta que chegou a pensar em músicos conhecidos, muitos deles até disponíveis para uma série de castings que não o convenceram.."Senti um interesse dos milaneses e isso é particularmente gratificante poder ser constatado em sala. Foi bom poder responder a perguntas concretas e perceber que há quem fique tocado por algo diferente daquilo que estamos à espera. E este foi um filme que no estrangeiro estava previsto chegar em 2020 e, claro, acabou por apanhar a pandemia... Technoboss foi muito afetado, mesmo tendo apanhado outros caminhos, embora nenhum tenha este valor de poder ser mostrado em sala. Creio ser muito importante esta troca com o público e com as pessoas", afirma, ele que costuma trabalhar com um italiano, o cineasta Alessandro Comedin. Ambos têm sido os montadores dos filmes uns dos outros, como é o caso deste Tecnoboss, história de uma viagem ao Algarve de um senhor prestes a chegar à reforma. "Para mim, foi sempre excitante e surpreendente encontrar uma recetividade aqui ao meus filmes, desde a curta Rapace, estreada no Festival de Milão, embora nunca tenha ficado muito marcado pelo cinema italiano no meu crescimento cinéfilo, é uma coisa mais de uma outra geração. Por outro lado, tenha esta cumplicidade com Alessandro Comedin, cineasta italiano que faz sempre um cinema muito local. Se calhar, agora há colegas contemporâneos como o Alessandro, o Alessio de Righi com os quais sinta uma maior proximidade. Seja como for, há uma disponibilidade grande aqui para filmes mais independentes e vozes mais particulares..."..Esta segunda edição do Luso não quis ter pose de acontecimento de massas nem era essa a sua vocação, mas pela receção entusiasmante de Technoboss em Milão, provavelmente se conclui que é fulcral para a visibilidade do cinema português este método cirúrgico de distribuição não tradicional e mais em forma de evento festivaleiro. Como nos contam da organização, a situação pandémica não ajudou a que algumas das estreias tivessem mais tempo de exibição, mas em Milão, Peruggia, Roma e Prato alguns destes filmes acabaram por ter uma estreia mais regular. Até meados de março, este circuito português continua e Mosquito, de João Nuno Pinto, está já no cartaz do Beltrade com o carimbo Luso. Se em Portugal temos a Festa do Cinema Italiano, em Itália, o Luso parece ter chegado para ficar e vencer..dnot@dn.pt

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