A vida invisível de uma criada de quarto 

Um filme mexicano que ecoa, através da sua protagonista, o badalado<em> Roma</em> de Alfonso Cuarón. <em>A Camareira</em>, de Lila Avilés, é uma das estreias da semana nas salas de cinema.
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Puxar lençóis, limpar o pó, esfregar banheiras e esvaziar cestos do lixo. A rotina de uma empregada de limpeza num hotel de luxo da Cidade do México é objeto de interesse refinado na primeira longa-metragem de Lila Avilés. A Camareira faz-se da observação acumulada desses gestos e do modo como eles dão o retrato da jovem protagonista: alguém que se esmera no trabalho, com a esperança de ser promovida, e que, no silêncio dos quartos, despe a inibição e dá azo à curiosidade diante dos pertences dos hóspedes, apenas na medida em que estes se oferecem como janelas indiscretas para uma realidade no extremo oposto da sua.

É inevitável, desde o primeiro momento, que Eve (Gabriela Cartol) nos recorde a Cleo (Yalitza Aparicio) do Roma de Alfonso Cuarón, ambas mulheres invisíveis resgatadas pelas lentes dos realizadores enquanto seres de secreta dignidade que olham o mundo por um ângulo muito próprio. Mas se Cuarón, na pele da criança privilegiada que foi, filtrava a imagem da criada Cleo através das suas memórias pessoais e afetivas do contexto familiar, Avilés mostra Eve na solidão do grande aquário que é o hotel, e sublinha aí os traços de uma intimidade feminina.

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A fauna burguesa desse hotel passa por ela de diversas maneiras. Há um hóspede que ordena recorrentemente amostras de champô e gel duche, acumulando-as na casa de banho por mero vício. Outro que é judeu ortodoxo e pede a Eve que lhe carregue nos botões do elevador alegando que não o pode fazer por causa do Sabbath. E ainda uma mulher que lhe dá gorjeta diária para cuidar do filho bebé durante os minutos em que toma um duche matinal. Eve dá conta de todos os recados com simpatia discreta e respeitosa, mas no fundo esconde uma tristeza de mãe a trabalhar para sustentar o filho pequeno com quem fala apenas ao telefone.

Nas pequenas e raras coisas que fazem a protagonista sorrir - um choque elétrico, a promessa de um vestido vermelho nos perdidos e achados, a leitura do livro Fernão Capelo Gaivota - está a fonte de uma energia oculta que, mais tarde ou mais cedo, vai estilhaçar a sua timidez exterior. "Pequenina mas resistente", como a certa altura a definem, Eva circula entre os quartos e a lavandaria como quem procura a porta de saída desta experiência de confinamento sui generis. E, no entanto, é na brancura e vazio dos quartos que vislumbramos a luz do seu desejo, o enigma que espreita por trás da jovem de farda e o sentido de ausência que capta a própria busca de uma linguagem por parte da realizadora.

A saber, Lila Avilés encontrou inspiração para A Camareira no projeto L"Hôtel: em 1981 a artista francesa Sophie Calle foi contratada como empregada de limpeza num luxuoso hotel em Veneza e, ao longo de três semanas, fotografou os objetos pessoais dos hóspedes como forma de imaginar as suas histórias. Será este o espírito de benigna intromissão que também move Eve. Mais do que os objetos, a câmara de Avilés persegue, com delicada justeza, a expressão humana da camareira na presença de tais pertences alheios. E ao focar-se nela e no habitat do hotel não está à caça de uma metáfora ajeitada da luta de classes. O filme opera sobretudo nas linhas de um estudo minucioso da vida invisível de quem muda lençóis enquanto espera por um qualquer el dorado - mesmo que seja apenas no plano da ficção íntima.

Bom ***

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